*Por José Guilherme Schmitz Schreiner
Em recente episódio, a derrubada, pelo Congresso Nacional, do decreto presidencial sobre o aumento de alíquota do IOF, adicionou um novo capítulo à disputa entre parlamentares e o Governo. Os frequentes atritos entre o Poder Legislativo federal e o Poder Executivo colocam em xeque a tão conhecida concepção sociológica do “presidencialismo de coalizão”. Mais do que uma mudança na configuração política-sociológica, a contenda com o Congresso e as reações diversas ao aumento das alíquotas do IOF revelam uma disfuncionalidade da própria estrutura do Estado brasileiro. Não se trata apenas de uma crise de governabilidade, mas da emergência de uma instabilidade institucional mais profunda, que desafia os próprios fundamentos do regime jurídico, na medida em que, institutos jurídicos são pervertidos e instrumentalizados. O aumento de alíquota do IOF com objetivo explicitamente arrecadatório, algo que contraria sua razão de ser, comprova isso.
Calcado na noção germânica de Rechtsstaat — isto é, a concepção de Estado vinculado à legalidade, à proteção dos direitos fundamentais e à limitação do poder por normas jurídicas — o Estado de Direito brasileiro parece consistir numa contradição performativa viva. A sua legalidade não é aquela que privilegia a segurança jurídica, a previsibilidade e a própria justiça. Os decretos ad hoc, as mudanças jurisprudenciais abruptas e um descompasso cada vez maior entre os Poderes apontam para uma realidade mais próxima de um Estado de Exceção do que de um Estado de Direito. Foi Carl Schmitt, em seu polêmico livro Politische Theologie, quem viu na exceção um novo modo de compreensão do Estado. Segundo o jurista alemão, a exceção perturba a unidade e a ordem, de modo que o Estado coloca o Direito em suspensão. Assim, há uma cisão entre aquilo que o Estado é e aquilo que o Direito ordena ou comanda, cabendo ao soberano a decisão final acerca da validade do Direito.
No entanto, quando a validade das normas torna-se refém da vontade política, e não do respeito a princípios objetivos e estáveis, compromete-se a própria ideia de Estado de Direito. A autoridade do Direito não pode depender do arbítrio de quem governa, sob pena de dissolver-se a segurança jurídica, corroer-se a confiança institucional e abrir caminho para a exceção permanente. Preservar a validade do Direito é, portanto, garantir que o poder esteja submetido a limites claros — e não o contrário.
É justamente nesse ponto que se revela a importância de recuperar a concepção clássica de Estado de Direito – entendido aqui como a sua variante teutônica Rechtsstaat . Trata-se de uma concepção relativamente recente, cuja formulação remonta ao início do século XIX sob a pena de autores como Robert von Mohl e Carl Theodor Welcker, os quais viam no Estado de Direito não uma forma de estado específica, mas um modo de ser do Estado. Esse modo particular era identificado com o Estado da Razão, isto é, o Estado que segue os ditames da Razão e busca concretizá-lo na vida dos cidadãos[1]. Trata-se da concepção do Estado e de seu papel com fortes tons kantianos, o que era compreensível, se levado em consideração o contexto iluminista das propostas da época. De todo modo, o Estado de Direito de então exigia a obediência dos governantes e dos governados dos princípios da razão, numa espécie de Direito Natural racional. A Razão apontava o bem a ser alcançado pela comunidade política.
A esses elementos, as décadas e os percalços políticos da história vieram adicionar outros tidos como essenciais para a caracterização do Estado de Direito. Martin Kriele, jurista e filósofo do Direito, assinala um ideal de justiça como nota específica do Rechtsstaat, algo advindo da tradição jusnaturalista que permeava esse conceito. A ideia, portanto, de Estado de Direito, para além da noção escolar de restrição arbitrária ao poder, carrega consigo a promoção de uma dada racionalidade e de uma dada justiça. Ao colocar a Razão e a Justiça como integrantes do cerne do Estado de Direito, advoga-se por uma comunidade política que não apenas reclame a restrição, a imposição de amarras ao poder, mas também a utilização do poderio político para o bem-comum. Não se almeja apenas a ausência de uma violência arbitrária. Deseja-se o cultivo, o florescimento de uma forma de vida que privilegie a razão e a justiça.
É nesse dilema que a concepção schmitteana do Direito e do Estado se impõe como antagonismo direto ao ideal liberal-racional. A definição de Carl Schmitt é francamente antiliberal: condena os esquemas racionalistas de compreensão do político, ataca o parlamentarismo, glorifica a decisão do aclamado soberano e promove, ao final, a distinção entre amigos e inimigos como critério último do político. Tal maneira de conceber o Estado não apenas deslegitima o modelo normativo do Estado de Direito, mas fornece base teórica para sua constante suspensão em nome de um imperativo de unidade e decisão.
Contra essa visão do Estado de Direito não foram poucos aqueles que, ao longo da história brasileira, se opuseram. Nomes como Oliveira Vianna e Francisco Campos – hoje lembrados somente pela historiografia especializada – contribuíram, ainda na República Velha, para o desmonte da compreensão liberal do Estado de Direito. Seus escritos tiveram impactos. Francisco Campos, o que mais alcançou a proeminência na década de 30, redigiu a constituição autoritária de 1937. Em suas entrevistas, ele afirmava que ‘do molde feito pelo liberalismo saíram, até hoje, apenas democracias deformadas’. Ou ainda que a democracia de partidos seria virtualmente uma guerra civil organizada e codificada.
Em que pese esquecidos pela maior parte dos juristas de hoje em dia, as ideias veiculadas pelos juristas autoritários da 1ª República simbolizaram a morte prematura do desenvolvimento do liberalismo jurídico no Brasil. Ainda que um nível mínimo de legalidade tenha sido restaurado em 1946, não demoraria muito para que Francisco Campos fosse convidado pela Junta Militar em 1964 a redigir o primeiro Ato Institucional. Assim como na década de 30, a ideia de legalidade, a promoção de um ideal de justiça e de razão se viram ameaçadas, e a mesma narrativa foi empregada pelos juristas da época para justificar o Estado de Exceção que se estabelecia, isto é, a narrativa de um imperativo de ordem nacional de salvação do país.
A crítica ao parlamentarismo, à federação e à incapacidade dos partidos em alcançarem o consenso se tornaram um lugar-comum nos escritos políticos da década de 60. Ao longo das décadas seguintes, os ataques contra o liberalismo no campo jurídico foram diminuindo frente à crescente autoritária da Ditadura Militar. O legado dessas críticas. Contudo, permaneceu tanto no campo acadêmico quanto na práxis política.
O estudo da tradição jurídica brasileira revela um espírito antiliberal permanente. Há um legítimo fio de Ariadne autoritário que pervade a história das instituições brasileiras do século XX. O emprego do termo “liberal” aqui não se traduz numa caricatura do liberalismo, mas naquilo com o qual o liberalismo, do ponto de vista propriamente jurídico, mais contribuiu: o Estado de Direito. A história jurídica brasileira é a história do Estado de Exceção, da eterna suspensão da ordem que espera a decisão de um soberano aclamado pelas massas. Em certo sentido, os brasileiros são vítimas de um pesadelo schmittiano, jogados de períodos de exceção em períodos de exceção, sempre à espera do restabelecimento definitivo da legalidade. Mais do que a perda da segurança jurídica ou ainda do uso arbitrário da violência, o contínuo Estado de Exceção da história brasileira demonstra que algo mais fundamental foi arrancado da população: uma concepção de razão, justiça e bem-comum. Não faltam aqueles que postulam um conceito negativo de Estado de Direito, entendido como a ausência de uma violência ilegal. É chegada a hora, porém, de buscar um conceito positivo do Rechtsstaat, um que permita o florescimento de nossas comunidades políticas, que forneça uma visão substancial da justiça, da razão e do bem-comum.
Os embates recentes entre o Congresso Nacional e a base do Governo acerca do IOF são uma pequena prova da fragilidade da ideia de Estado de Direito no Brasil. A imprevisibilidade do decreto presidencial aumentando as alíquotas do IOF como medida desesperada de arrecadação, pervertendo a própria lógica interna do referido tributo, transborda a irracionalidade de nossa época. Ela adiciona mais uma linha na história de exceção do Direito brasileiro. O desfecho desse romance em cadeia – parafraseando Dworkin – não se avoluma no horizonte como sendo a retomada da legalidade. Antes, o Estado de Exceção se transforma em prelúdio da tomada de poder de um soberano. A sociedade brasileira precisa estar atenta para quando ele chegar, pois será nesse momento que mais precisará de uma concepção nítida substancial e comprometida com o bem comum para defender o Estado de Direito.
*José Guilherme Schmitz Schreiner é graduando em Direito (FMP/RS), com período de intercâmbio na Goethe Universität Frankfurt. Coordenador do Instituto Atlantos.
[1] Acerca do surgimento do conceito de Estado de Direito, ver BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Entstehung und Wandel des Rechtsstaatsbegriffs. Em Recht, Staat, Freiheit. Suhrkamp Verlag, 1991.