Hoje às onze da noite, horário de Londres – em cujo subúrbio de Greenwich ainda passa o meridiano que determina os fusos no resto do mundo –, a contagem regressiva projetada sobre o número 10 em Downing Street chegará a zero. O Reino Unido estará oficialmente fora da União Europeia (UE) – 47 anos depois de ter entrado oficialmente no bloco, 3 anos e 7 meses depois do plebiscito em que decidiu sair.
A aprovação do acordo de saída nos Parlamentos britânico e europeu sacramentou o divórcio e enterrou as esperanças daqueles que ainda acreditavam num novo plebiscito para mudar o resultado de 2016. A rejeição desse mesmo acordo nos Parlamentos da Escócia e Irlanda do Norte não tem o poder de fazer a contagem regressiva parar. Hoje à noite, no instante em que o premiê Boris Johnson fizer seu pronunciamento à nação na TV, o Brexit se tornará realidade.
E agora? Para usar a imagem batida daquele poeta americano que venerava os ingleses e viveu tentando ser um deles, não será uma explosão, mas um murmúrio. Pelo menos no período de transição ao longo dos próximos onze meses, até 31 de dezembro, nada mudará na prática, com exceção de medidas perfunctórias como a retirada das bandeiras britânicas dos organismos europeus ou o corte do acesso aos sistemas de gestão da UE.
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Em compensação, como já escrevi em posts anteriores, a saída formal não encerra a novela, apenas da início a uma temporada que promete ser ainda mais tensa e movimentada que a anterior. Ao longo desse período aparentemente tranquilo, os britânicos terão o desafio de negociar um novo acordo de livre-comércio com a UE e tentar estabelecer novas relações comerciais com outros países, em especial, a mais especial das relações especiais – a que Winston Churchill batizou de “a relação especial” entre o Reino Unido com os Estados Unidos.
Tanto o premiê Boris Johnson quanto o presidente Donald Trump, que disputa a reeleição, têm interesse em concluir um novo acordo comercial o mais rápido possível. Ambos prometeram rapidez, e o texto-padrão oferecido pelos americanos em todas as negociações torna a promessa verossímil. Boris almeja a mesma celeridade em acordos com Austrália, Nova Zelândia e Japão. A realidade mostra, contudo, ser impraticável jogar em tantos tabuleiros simultâneos.
Há uma tensão evidente entre as demandas da negociação com a UE e as que virão dos americanos. O caso mais folclórico é o dos frangos lavados com cloro nos Estados Unidos, prática vetada pelas normas de segurança alimentar europeias. Na negociação, os europeus procurarão garantir que, para manter acesso livre a seus mercados, os britânicos continuem respeitar tal regra, além de dezenas de outras regulações ambientais, trabalhistas, sociais e toda a barafunda burocrática de Bruxelas, de que o Brexit prometia livrar o Reino Unido.
Como 45% das exportações britânicas e 53% das importações envolvem o bloco, será difícil Boris não ceder a exigências que são, no fundo, de seu próprio interesse. Sinal disso foi a decisão, anunciada na última terça-feira, de manter o acesso da chinesa Huawei às redes de telefonia celular britânicas de quinta geração, contrariando um pedido americano.
Na batalha que definirá o futuro da tecnologia digital neste século, Boris preferiu ficar ao lado dos europeus e com os chineses, contra os americanos. O governo britânico também se recusou a cancelar uma taxa de 2% que planeja impôr a serviços digitais, novamente contrariando a vontade dos Estados Unidos.
Mesmo que os Estados Unidos respondam por 15% do comércio exterior britânico, e ainda que ambos os países mantenham investimentos e projetos mútuos em diversas áreas, o acordo comercial com os americanos esbarra em exigências ambientais e em normas das indústrias farmacêutica e de alimentos difíceis de transpor.
Há ainda desafios relevantes nas áreas de defesa e inteligência, em que britânicos e americanos cooperam estreitamente. Por mais que Trump e Boris tenham perfis políticos – e até físicos – semelhantes, por mais que pessoalmente façam juras de amor, a “relação especial” entre britânicos e americanos nunca esteve tão estremecida desde pelo menos a crise de Suez em 1956. É cada vez mais difícil conciliar os interesses geopolíticos em temas que vão do acordo nuclear com o Irã às mudanças climáticas, da Ucrânia à China.
O Brexit põe o Reino Unido diante de um dilema transatlântico que, por força do cronograma estipulado no acordo de divórcio, precisará ser resolvido nos próximos meses. Ou bem Boris fecha rapidamente um acordo limitado com a UE, ou então será obrigado, até 1º de julho, a pedir uma nova extensão no prazo de negociação. Do contrário, o Reino Unido será colocado automaticamente diante da situação caótica do divórcio sem acordo no final do ano, cenário que todos tentam evitar.
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Será a primeira dor de cabeça resultante do Brexit –mas não a única. O Parlamento escocês aprovou o chamado por um segundo plebiscito pela saída do Reino Unido (para ter valor, a medida precisaria passar também pelo Parlamento britânico). Noutra decisão, determinou que bandeira europeia continuará a tremular sobre as casas parlamentares de Holyrood, em Edimburgo, mesmo depois do Brexit.
O grau de adoção das normas europeias terá impacto decisivo na viabilidade do plano estabelecido no acordo de divórcio para garantir a fronteira aberta entre a Irlanda e a Irlanda do Norte, onde o movimento pela independência dos britânicos também ganha força. Para não falar nos partidários da permanência na UE, derrotados, mas que ainda correspondem a metade do país e são ampla maioria em setores essenciais da sociedade, como academia ou imprensa.
Como resume Amanda Sloat, analista da Brookings Institution que acompanha o Brexit desde o início: “Ficará claro com o tempo se o Brexit será o arauto de um Reino Unido global florescendo economicamente fora das restrições regulatórias da UE e firmando acordos comerciais vantajosos com países como os Estados Unidos – ou se resultará num país economicamente enfraquecido e internacionalmente isolado, amaldiçoado por tensões domésticas”.
Fonte: “G1”, 31/01/2020