O episódio é um clássico do país ibérico. Era o dia 12 de outubro de 1936. Num ambiente eletrizado pelos conflitos que ameaçavam deixar a sociedade exangue, diversos oradores se sucediam atacando aqueles que acusavam de ser a “anti-Espanha”. Foi nesse contexto que o filósofo Miguel de Unamuno pediu a palavra e, do alto dos seus 72 anos, explicou para a audiência: “Vencer não é convencer. É preciso, antes de mais nada, convencer — e o ódio não pode convencer”. Ele estava nesse ponto quando foi interrompido pelo general Millán Astray, um ícone do franquismo, clamando aos berros “contra o câncer da nação, que precisa ser exterminado, cortando na carne viva como um frio bisturi”. Tão exaltado estava, tendo uma saúde bastante fraca, que ficou sem fala e teve que se sentar, não sem antes bater continência para o público. A parcela da audiência que era adepta dessas teses — num país dividido ao meio — explodiu em frenesi, no meio das exclamações de “Viva a Espanha!”.
Nesse contexto, no meio do público escutou-se o grito alguns decibéis acima dos outros: “Viva la muerte!”. Fez-se então um silêncio sepulcral — e todos os olhos se voltaram para o orador original. Um indignado Unamuno recompôs-se e pronunciou as palavras que se tornaram um marco daquela década infame: “Acabo de escutar um grito necrófilo e insensato. Ele corresponde a dizer: ‘Muerte a la vida!’. E eu, que passei anos criando paradoxos que irritavam àqueles que não os compreendiam, devo dizer a vocês, com a autoridade que tenho na matéria, que este paradoxo ridículo me parece repugnante”. A outra metade da plateia veio abaixo. O resto — três anos de uma Guerra Civil atroz — é História.
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Corta para quase cinco décadas depois, no Brasil, saindo do regime militar, numa transição difícil e com a situação ameaçando desandar, pela tensão associada aos grupos radicais. Tancredo Neves conduzia o processo com a experiência de quem tinha visto de perto o suicídio do Getúlio, a construção de Brasília, o auge e a cassação de JK, a renúncia de Jânio, a experiência parlamentarista de Jango e o ciclo militar completo de 1964 em diante. Um deputado da sua “tropa”, dividindo o grupo de apoiadores em categorias, se refere aos dois ou três segmentos mais importantes e, no fim, fala “do resto”. Eis então que Tancredo o interrompe e, com muita calma, lhe dá uma pequena lição de vida: “Meu filho, não fala do ‘resto’. Fala dos ‘outros parlamentares’”.
Poucos meses antes, eu tinha tido a oportunidade de conhecer Tancredo, na única vez em que estive com ele. Eu carregava, na época, toda a empáfia dos meus 20 anos e as marcas de quem tinha saído da Argentina anos antes, num quadro de polarização política que lembrava muito o da Espanha da década de 30. Com esse curriculum, achava a pregação conciliadora do Tancredo algo entre o deprimente e o condenável. E, mesmo com toda a pretensão própria dos meus poucos anos e a ignorância profunda que eu não sabia que tinha acerca da vida, saí da conversa com a percepção clara de que tinha conversado 15 minutos com um dos grandes da História — e que teria muito a aprender com esse velhinho de ar aparentemente frágil. Só muitos anos mais tarde fui perceber que tinha recebido uma aula de sabedoria. Sem falar da fidalguia com a qual ele reagiu a minhas provocações juvenis acerca da necessidade de radicalizar o discurso contra o governo Figueiredo.
Corta para quase quatro décadas depois daquele 1980 e algo. É preciso dizer o óbvio: o Brasil está doente. E digo isso com olhos de observador externo. Nasci aqui, mas como fui embora com menos de 1 ano de vida, quando voltei na adolescência foi como se chegasse pela primeira vez. A prosperidade é incompatível com nosso grau atual de polarização. O Brasil de hoje não guarda qualquer relação com o lugar que conheci em 1976, onde forças opostas conversavam e havia espaços de entendimento. Sem resgatar o diálogo, o futuro do país será feito de fúria, tristeza e sombras.
Fonte: “O Globo”, 17/12/2019