Collor e Sarney advogam que os atos secretos do governo fiquem guardados para todo o sempre
O corpo não é eterno. Seres humanos não são eternos. As civilizações não são eternas: foram e serão invariavelmente varridas da face rugosa da Terra, como sujeira de cachorro no jardim (cachorros e jardins também não são eternos). O planeta Terra não é eterno – em alguns bilhões de anos, dizem os cientistas, será engolido pelo Sol, que deve inchar e então vai se apagar, uma vez que estrelas não são eternas. Neste vasto mundo finito e perecível, apenas o segredo de Estado, no Brasil, é eterno, ao menos na opinião dos senadores Fernando Collor (PTB-AL) e José Sarney (PMDB-AP). Ambos ocuparam a Presidência da República e devem saber de fatos tenebrosos que, se divulgados, causariam tragédias inimagináveis por nós, mas perfeitamente previsíveis para eles.
Para evitar os desastres que anteveem, Collor e Sarney contam com os préstimos da eternidade. Advogam que, no âmbito do Estado brasileiro, essa categoria tenha lugar. Que a eternidade seja impossível no reino da física ou da biologia, não importa. Ela é concebível na metafísica e na Bíblia Sagrada, e isso basta para que a dupla aguerrida, Sarney e Collor, dê curso aos seus intentos. Na opinião deles, os atos secretos dos governantes ficarão armazenados lá, na metafísica, para todo o sempre. Estamos, como se vê, nos domínios da megalomania transcendental. Ou no domínio da estatização dos séculos e séculos, amém.
Sarney e Collor já brigaram muito um com o outro. Atualmente, irmanam-se no apoio (eterno?) ao governo Dilma. Irmanam-se ainda na fé que têm na eternidade. Uma fé inquebrantável, diria Collor, com seu gosto imorredouro por adjetivos absolutos. Sarney, que já é imortal da Academia Brasileira de Letras, lida bem com a temática. Deve ter sido por isso que, em 2009, já presidente do Senado, não hesitou em deixar transparecer sua reverência litúrgica pelos atos secretos da casa. Naquele ano, 2009, descobertos pela imprensa e retirados da condição de sigilo eterno, os atos secretos revelaram bastidores embaraçosos do Senado. Uma comissão de sindicância teve a humildade de contá-los. Totalizavam 650. Tratavam de preocupações terrenas, quase mundanas: um aumento de salário para um, uma gratificação para outro, essas coisinhas à toa. Mesmo assim, chocaram a opinião pública.
Talvez por isso, para evitar que o cidadão brasileiro passe por sustos análogos, Sarney defenda o sigilo eterno. Melhor assim. Nessa matéria, aliás, ele foi homenageado no mês passado pela decisão do STJ, que anulou as provas da Operação Boi Barrica, uma investigação da Polícia Federal que corria sob segredo de Justiça. A anulação das provas, que, um dia, também em 2009, caíram, desgraçadamente, nas mãos de jornalistas, vem restabelecer, ainda que de modo um tanto avesso, a prevalência do sigilo. Se não valem mais nada, devem desaparecer. Ponto. O que deveria permanecer em segredo continuará em segredo, para tranquilidade geral da nação. E, ocasionalmente, dele mesmo.
Embora cerrem fileiras na base aliada do governo, Collor e Sarney contrariam a orientação de gente graúda do próprio governo quando defendem com tanto empenho a eternidade dos segredos de Estado. Dizem que não agem em causa própria. Dizem que, de seus mandatos na Presidência da República, tudo se pode saber. Mas, alertam, há fatos de outros presidentes que, segundo eles, não podem vir a público jamais. Nunca. De jeito nenhum.
No mais, não adianta perguntar sobre esses fatos. No que depender de Collor e Sarney, nenhum de nós, aqui na planície, poderá conhecê-los. Eles sabem, mas nós não poderemos saber. Só eles podem ter acesso a esse tópico da eternidade. Nós não temos maturidade nem maioridade para tanto. Nossos filhos e nossos netos também não terão. Nesse ponto, a megalomania transcendental dos dois ex-presidentes se converte em presunção de superioridade perpétua. Collor e Sarney acham que têm sobre nós, e sobre nossos descendentes, o direito de saber mais. Por toda a eternidade.
Não dá. Chega de metafísica. Que um governo lide com informações reservadas é compreensível. Que essas informações sejam guardadas por, vá lá, um período de 25 anos, um pouco prorrogáveis, é tolerável. Fora isso, nem mesmo o amor de Vinícius de Moraes se pretendia eterno. Concedamos a figura do “sigilo infinito enquanto dure” a Collor e Sarney. Que eles possam escrever na lei que o sigilo deles é do tipo “infinito enquanto dure” e, em troca, desistam de censurar o futuro.
Fonte: revista “Época”
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