I— A dádiva
A vida é uma dádiva. Um presente dos deuses para os antigos, um acaso biológico para os modernos. Mesmo que frágil, curta, sangrenta e bruta para cada espécime animal — como também para o homem até bem pouco tempo atrás —, seres animados pelo sopro da vida podem reproduzir o milagre da criação. Essa fragilidade das vidas individuais torna ainda mais assombroso o fenômeno de transmissão de suas fagulhas através dos túneis do tempo, centenas de milhões de anos de evolução das espécies.
II — A vida consciente
Mas há um milagre ainda maior do que a existência: a vida consciente. Aqui tem início a escalada existencial da espécie humana e sua aspiração à transcendência do material e do temporal. Cada vida é única. A consciência é a apropriação individual dessa oportunidade de experimentar um universo de possibilidades que transcendem as dimensões estritamente materiais de um mundo físico.
A espiritualidade, a estética, a moral, a música, a imaginação e a própria consciência da razão são dimensões inacessíveis a indivíduos de outra espécie. E as diferentes coordenadas nesse universo multidimensional é que tornam único cada indivíduo. Essas dimensões extras retiram os humanos de um plano existencial primitivo, a savana da mera sobrevivência do mais adaptado ao meio ambiente natural. Criamos então, em uma mesma época, 6 bilhões de universos existenciais profundamente distintos, experimentados de modo único por cada um de nós.
Não há práxis individualista ou utopias coletivistas que legitimem a extinção de um só desses universos. Nada há de mais sagrado do que cada uma dessas vidas. É a consciência dessa dádiva ainda maior do que a simples existência, essa forma perceptivelmente superior que é a vida consciente, a causa de nossa pretensão à eternidade.
III — Em busca do significado
Essa pretensão de transformar um fugaz acaso biológico em vida consciente e eterna é uma busca de sentido para a existência mesma. Uma revolta contra a muralha de nossos limites cognitivos. Estamos diante do maior dos desafios. Dar significado a uma vida consciente. Amor nos microcosmos de nossas famílias. Amizade e cooperação nos macrocosmos do lazer e do trabalho. Solidariedade com os demais seres humanos. Possibilidades alternativas a serem vividas. Vontade de realizações, de aperfeiçoamentos, de exercício das potencialidades. A busca do conhecimento. O anseio pelo reconhecimento. Mas nos anjos caídos, que também buscam um sentido para suas vidas, ainda que em detrimento dos demais, a vontade de poder sobre seus semelhantes, a má política, o dinheiro a qualquer custo e a guerra.
Se a vida é uma dádiva, e a vida consciente um milagre ainda maior, uma vida com significado requer inteligência, imaginação, trabalho e, acima de tudo, muito amor.
(O Globo 28/12/2009)
Muito bom!… Belissimo, na verdade!