A revolução, o sistema, o processo, isso – qualquer que seja o nome que se use – esgotou há muito tempo seu combustível, sua capacidade de renovação. Não lhe resta mais nada de velho para destruir, mas ainda há muita coisa a ser feita. Cinquenta e dois anos depois do triunfo revolucionário, o país tem mais terras improdutivas do que nunca e o déficit habitacional mais alto da história. A moeda com que se paga o salário dos trabalhadores não tem valor real e as duas áreas de maior prestígio, a educação e a saúde, passam por um momento de verdadeira crise. Observa-se um índice demográfico em retrocesso e uma emigração crescente. O marxismo-leninismo, que um dia foi a ideologia oficial, hoje é uma curiosidade arqueológica só mencionada em círculos acadêmicos, e o Partido Comunista, o único permitido pela lei, não convoca nenhum congresso há mais de uma década.
Todos se preocupam com a crise de valores, principalmente com a diminuição da cidadania responsável, com a aceitação do ilícito como algo normal, até mesmo como forma de sobrevivência. Saltam à vista a depreciação das regras de decência mais elementares, a falta de respeito pelo que é do outro, principalmente se for um bem comum. Nós, cubanos, convivemos com o vandalismo, o enraizamento do racismo, o aumento do regionalismo, o culto crescente a tudo o que é estrangeiro, o desprezo desmedido pelo que é nacional. Somados a tudo isso, a falta de escrúpulos na gestão dos recursos públicos, o suborno como método preferencial para solucionar um problema ou satisfazer um desejo, a metástase da corrupção em todas as esferas da sociedade. Campeiam à solta o nepotismo, a condescendência popular com o mercado negro, a falta de confiança nas instituições e nos processos de suposta solução que elas promovem. Com uma população carcerária beirando os 80 mil detentos, Cuba se transformou num país onde trabalhar chega a ser visto como um absurdo e, na melhor das hipóteses, como uma formalidade.
O pior de tudo, porém, não é a variedade nem a intensidade desses problemas, e sim a falta de perspectiva de encontrar-lhes uma solução. A sociedade civil está desarticulada e os meios de comunicação só projetam um país que não tem relação com a realidade. Não há um debate estruturado sobre as mazelas que assolam o país. A oposição política, dispersa, perseguida, satanizada e, muitas vezes, instrumentalizada ou infiltrada pouco pode fazer para divulgar seus programas e propostas.
As mudanças que a sociedade cubana reivindica são inadiáveis, mas podem ser consideradas, se analisadas do ponto de vista estritamente revolucionário, um retrocesso. Em decorrência disso, há uma enorme resistência para implementá-las de vez, principalmente entre aqueles que dedicaram seus melhores anos à construção de um ideal que jamais foi alcançado. No campo dos direitos civis, as pessoas almejam que o governo acabe com os trâmites humilhantes da “permissão de saída”, que restringe as viagens ao exterior. E, principalmente, com o conceito de “saída definitiva”, que transforma em estrangeiros os emigrantes, impedindo-os de se radicar novamente em seu próprio país e confiscando suas propriedades na saída. Já houve um pequeno avanço quando se permitiu que cubanos se hospedassem em hotéis e contratassem telefonia celular. Em meados de 2008, suspendeu-se o veto à venda de alguns artigos eletrodomésticos – como fornos de micro-ondas, leitores de DVD e computadores, até então proibidos -, mas ainda há muito a ser conquistado. Entre as reivindicações nesse sentido, está a permissão para que o cidadão cubano possa comprar livremente um carro ou contratar serviços de internet e TV a cabo.
Essas “aspirações de classe média” são pouca coisa se comparadas às mais essenciais: a necessidade de expressar livremente suas opiniões e o direito de se associar a qualquer tendência ou preferência sem temer represálias.
Descriminalizar a discordância.
No longo percurso de transformações que temos pela frente, ao menos foi dado um primeiro passo com a libertação, a partir de julho deste ano, dos presos políticos encarcerados durante a Primavera Negra de 2003. Foi essa a principal reivindicação apresentada ao governo da ilha por todos aqueles que, por um motivo ou outro, tentam mudar o atual estado das coisas. Nas mais diversas agendas de política e cidadania dos partidos de oposição e dos grupos da sociedade civil, a libertação desses prisioneiros era obrigatória para o avanço da democratização do país.
No começo deste ano, a greve de fome do preso político Orlando Zapata Tamayo comoveu a opinião pública dentro e fora de Cuba. Um dia depois de seu falecimento, ocorrido em 23 de fevereiro, o psicólogo e jornalista independente Guillermo Fariñas declarou-se em greve de fome e sede até a morte ou até que o governo beneficiasse, ao menos com “licença extrapenal”, os presos que estavam com a saúde mais debilitada. O próprio presidente Raúl Castro disse publicamente que o deixaria morrer, mas jamais cederia à chantagem. Aconteceria por aqueles dias o sétimo aniversário da Primavera Negra e as Damas de Branco desafiaram o regime decretando sete dias seguidos de passeatas por todas as ruas da cidade. Levavam gladíolos nas mãos e foram agredidas e insultadas por partidários do sistema, que, fingindo representar o povo indignado, eram conduzidos de ônibus até os locais das manifestações. As agressões provocaram a reação da alta hierarquia da igreja católica, que, num feito sem precedentes, conseguiu uma moratória para os ataques e um acordo para sentar-se e conversar com as autoridades.
Em decorrência desse diálogo e com a intervenção do chanceler espanhol Miguel Ángel Moratinos, levantou-se o compromisso de libertar todos esses prisioneiros num prazo não superior a quatro meses e de facilitar sua saída do país para a Espanha. Vistos em seu conjunto, os acontecimentos das últimas semanas poderiam ser considerados um sinal positivo para aqueles que estão esperando mudanças profundas na sociedade cubana, mas somente isto: um sinal. De pouco adianta o governo libertar um grupo de presos políticos se não puser abaixo todo o arcabouço legal que lhe permite mandar novamente para a prisão um número igual de pessoas pelos mesmos motivos.
Ainda hoje segue em vigor a Lei 88, conhecida como Lei da Mordaça, que prescreve longas penas para quem colaborar em revistas e jornais estrangeiros ou conceder entrevistas a jornalistas desses meios. Sem caminhos legais disponíveis para a criação de associações, a fundação de sindicatos, partidos políticos ou organizações estudantis constitui um crime de “associação ilícita”, e qualquer meio pelo qual um cidadão manifeste sua divergência com o governo, mesmo que seja um inocente cartaz, pode ser interpretado como o cometimento de um crime de propaganda inimiga. Do ponto de vista dos opositores, as libertações são motivo de alegria, porque os que não deviam ter ficado nem um único dia atrás das grades hoje estão em liberdade. No entanto, não há, nem haverá, uma atmosfera de agradecimento ou de complacência até que a discordância não seja descriminalizada; não antes que Raúl Castro pegue o microfone e garanta que ninguém mais nesta ilha será preso por suas opiniões. Mas o tempo está se esgotando.
A Revolução Cubana, tal como é atualmente, não se parece com o sonho de ninguém, nem dos que a construíram e muito menos de nós, que a herdamos. Ao menos já sabemos que não há tempo nem vontade de começar de novo pelo princípio.
Publicado na Revista “Continuum Itaú Cultural”
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