Embora vulgarmente identificada com a regra da maioria, a democracia é muito mais do que isso. A questão da titularidade do poder político – o governo do povo – não prescinde das discussões sobre o modo e os limites do processo de tomada de decisões nos Estados democráticos de direito. Neste sentido, a Constituição funciona como o estatuto jurídico da democracia; o manual que disciplina as regras do jogo democrático.
O respeito às regras constitucionais do processo legislativo é garantia de transparência, participação popular e respeito aos direitos das minorias. Sua observância é direito público subjetivo de cada parlamentar e de toda a sociedade. A decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou a observância da ordem cronológica para a apreciação dos 3.066 vetos acumulados desde 2001 nos escaninhos do Congresso Nacional nada mais fez do que exigir o cumprimento do devido processo legislativo estabelecido na Constituição. Com efeito, o art. 66, parágrafos 4º e 6º, da Constituição institui a obrigatoriedade de apreciação do veto, em sessão conjunta das Casas Legislativas, no prazo de 30 dias a contar do seu recebimento. Esgotado tal prazo sem que tenha havido deliberação, o veto será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final.
O sentido das normas constitucionais é o de assegurar a efetiva deliberação do Congresso Nacional sobre os vetos presidenciais, evitando-se o rolo compressor do Executivo. Daí ter o constituinte estabelecido um prazo para a sua apreciação, cuja inobservância deflagra o sobrestamento das demais proposições até sua votação final. Extrai-se da sistemática constitucional, assim, um dever congressual de deliberação sobre os vetos em ordem cronológica, eis que a pendência dos mais antigos impede a apreciação dos mais recentes.
No caso antes referido, uma maioria ocasional do Parlamento pretendia inverter a ordem cronológica prevista na Constituição e apreciar o veto parcial aposto pela presidente da República sobre algumas disposições da lei que fixou novas regras de distribuição de royalties e participações especiais entre os entes da Federação. Foi, portanto, acertada a decisão do ministro Luiz Fux que determinou a observância da ordem cronológica dos vetos pendentes de apreciação, como exige a Constituição da República. O atropelo ao procedimento representava uma nítida estratégia da maioria para esmagar a capacidade de mobilização política e popular da minoria parlamentar interessada na manutenção do veto.
Carece de fundamento a alegação de que a decisão do STF estaria a manietar a independência do Poder Legislativo. Primeiro, porque nenhuma instituição republicana pode arrogar-se poder superior ao que lhe confere a Constituição. Se a agenda legislativa está disciplinada de determinada maneira pelo texto constitucional, a própria independência do Poder Legislativo já foi concebida sob tais balizas. Além disso, a decisão da Corte Suprema não se substituiu aos parlamentares, nem avançou de qualquer modo sobre o conteúdo das deliberações políticas a serem tomadas sobre os vetos. Ao contrário – e quase ironicamente -, o Supremo decidiu que cabia ao Congresso decidir sobre os vetos pendentes, o que não fazia desde 2001. Assim, antes que alguma interferência indevida na independência do Parlamento, o gesto do Poder Judiciário representou um fortalecimento do Congresso Nacional ante o reconhecido poderio do Executivo.
Em importantes precedentes o Supremo tem obstaculizado a tramitação de projetos de lei e até de propostas de emendas constitucionais que contrariam os procedimentos ou avançam sobre cláusulas pétreas da Constituição. Ao assim agir, o STF não está a restringir a independência dos Poderes, nem a comprometer a soberania popular. Ele está apenas cumprindo o seu papel de guardião da Constituição e das regras do jogo democrático. Sua intervenção se dá a favor, e não contra a democracia.
Fonte: O Globo, 27/02/2013
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