Questões constitucionais difíceis (hard cases) são geneticamente complexas, ensejando polêmicas acirradas e controvérsias profundas. Entre os caminhos do possível, o entendimento judicial vencedor deve ser a melhor representação daquilo que se entende por justo, dentre todas as hipóteses críticas de ponderação razoável. No entanto, como não estamos no campo das exatas e unívocas soluções matemáticas, o ônus da argumentação constitucional impõe necessária carga de expressa persuasão racional como um elemento público de controle e legitimidade do conteúdo decisório.
Se a abertura semântica do conceito de justiça dificulta uma definição positiva categórica, a dimensão do injusto (lógica negativa) é de mais fácil verificação. Por exemplo, uma decisão constitucional que beneficie a impunidade dos poderosos, e não a decência pública e a honra das instituições, é manifestamente injusta; uma decisão que segregue por motivos raciais é injusta; uma decisão que estabeleça censura prévia à livre manifestação do pensamento também é injusta. Ou seja, se a justiça é um somatório de timbres plurais, a injustiça grita numa só voz.
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Sim, as decisões do Supremo impactam a vida das pessoas, interferem na qualidade da democracia e repercutem no funcionamento republicano. Nesse sentido, a sabedoria superior de Richard A. Posner bem aponta que a doutrina jurídica “deve sempre ser moldada com cuidadosa consideração às consequências”, auxiliando o judiciário a evitar pronunciamentos desconexos à realidade da vida. Logo, é de intuir que, quando um comando decisório resultar um efeito prático de sonora injustiça, o tribunal encontrará substantiva e crescente resistência cívica em uma quadra democrática loquaz, altiva e despida das autoritárias amarras do silêncio.
Quer dizer, então, que o Supremo deve bater continência à dominante opinião pública do momento?
Ora, é claro que não. O STF pode e deve se impor a maiorias eventuais que podem muito, mas que não podem tudo. Sabidamente, o princípio político majoritário não é absoluto, como também há limites intransponíveis aos ímpetos e iniciativas da suprema magistratura. Na República, ao invés de onipotente arbítrio estatal, elegemos o ponderado equilíbrio dinâmico do poder. E não há ponderação equilibrada sem o privilégio público à razão pensante. Por assim ser, o diálogo constitucional da democracia requer um modelo aberto e inclusivo de participação política responsável.
Sobre o ponto, em conhecida e propositiva lição, Peter Häberle bem expôs que “o direito processual constitucional torna-se parte do direito de participação democrática”. Logo, nas pulsantes sociedades contemporâneas, não há mais espaço para intocáveis instâncias de majestade que, através de um velho e aturado monopólio hermenêutico, não raro faziam da lei um mero artefato de proteção do rei e seus amigos de ocasião.
Felizmente, avançamos. O civismo constitucional vigente não mais aceita a irresponsabilidade política nem a impunidade de corruptos e corruptores. Nessa via de pragmatismo ético vertical, as cortes constitucionais – à luz de sua força vetor sobre o sistema judicial – possuem função republicana determinante na tarefa de concretizar o princípio da legalidade como eficaz instrumento moral da democracia política. Temos, aqui, uma clara exigência civilizatória para uma nova e melhor responsividade jurisdicional do Direito, com vistas à inadiável implementação otimizada da justiça no seio da sociedade democrática.
Para tanto, precisamos de um Supremo Tribunal Federal intimamente comprometido com o bem do Brasil e dos brasileiros. As circunstâncias históricas do presente são graves e absolutamente desafiadoras, exigindo precisão hermenêutica e compromisso com o futuro da nação. No todo, as pessoas precisam olhar, entender e confiar nas decisões constitucionais da corte. Afinal, a desconfiança pública, além de sintomática, é o berço de perigos deletérios.
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Frisa-se, por oportuno, que o surrado recurso à ignorância popular em matéria político-constitucional não resiste ao calor do civismo público atual. A voz das ruas está atenta aos fatos, pois a justiça, assim como o amor, dispensa formalidades ou curso superior, vivendo com natural pureza no coração do povo. Um povo que não mais aceita ser enganado nem tratado como inútil.
A experiência vivida do grande magistrado Aharon Barak, em artigo seminal na Harvard Law Review, ensina que “a confiança pública no Judiciário aumenta quando ao público é falado a verdade”. Que a luz das palavras do eminente ex-presidente da Suprema Corte de Israel ilumine o nosso colendo STF a jamais faltar a seus altos deveres de contribuir para uma institucionalidade nacional mais proba, digna e decente, renovando, com exemplos e decisões modelares, a crença dos cidadãos na justiça como um bem de todos.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 16/11/2019