O acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia (UE) é sem dúvida a maior conquista do governo Jair Bolsonaro em seus primeiros seis meses. Não dá para reduzir o significado da abertura comercial para o Brasil, uma das economias mais avessas ao comércio internacional em todo o mundo.
A negociação só foi fechada depois de 20 anos de vaivém, à revelia dos instintos nacionalistas da atual chancelaria e do protecionismo atávico do nosso empresariado. Por determinação da liderança do atual governo, o pragmatismo prevaleceu sobre a ideologia.
Contribuiu para a aceleração uma conjunção improvável de fatores que levaram os europeus a ter pressa. Do ponto de vista econômico, precisam abrir mercados para fazer frente à ascensão da China e assegurar fontes de crescimento econômico (nenhuma é tão segura quanto o comércio). Do ponto de vista político, aproximar-se do Mercosul é uma resposta ao afastamento dos Estados Unidos na gestão Donald Trump, um gol marcado em campo adversário.
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Havia, enfim, a circunstância política interna. Depois das eleições europeias de maio, está em curso a transição para a nova Comissão Europeia (organismo executivo do bloco), com mudanças em cargos críticos da UE. A nova liderança, ainda incerta, poderia dar outro tom e rumo às negociações.
O resultado do acordo ainda está distante. Primeiro, o documento firmado na última sexta-feira em Bruxelas precisa ser detalhado em todos os seus 17 capítulos, cobrindo todos aqueles temas tecnicamente áridos e imperscrutáveis para quem não está habituado ao jargão da diplomacia comercial. Estão lá as invariáveis “salvaguardas”, as “regras de origem”, os “direitos de propriedade intelectual”, a “indicação geográfica”, as “barreiras técnicas” e “fitossanitárias”, as “compras governamentais”, os “mecanismos de solução de disputas” e o indefectível “desenvolvimento sustentável”.
Fechada a redação final – algo que não ocorrerá antes de pelo menos seis meses –, o acordo será enfim assinado pelas partes. Em seguida, deverá ser submetido à maratona de ratificações parlamentares. Vai aí mais um período entre um e dois anos.
O capítulo econômico, relativo à eliminação de tarifas, precisa do aval apenas dos parlamentos da UE e dos quatro países do Mercosul. Dependendo gestão do governo brasileiro, é provável que o novo regime de tarifas já possa entrar em vigor assim que aprovado apenas aqui.
O capítulo “político”, que envolve compromissos de propriedade intelectual, ambientais, regras sanitárias e coisas do tipo, precisa ser ratificado também pelos parlamentos de todos os países europeus, em certos casos até mesmo regionais. Foi o Parlamento da região belga da Valônia que emperrou o acordo de livre-comércio com o Canadá, aprovado apenas depois de sete anos.
Uma vez que o acordo comercial esteja em vigor, começam a valer a redução de tarifas e as cotas determinadas para os vários setores. Ao fim de quinze anos, 91% das exportações europeias poderão chegar ao Brasil com tarifa zero. Na Europa, as tarifas serão zeradas para 95% das exportações dos países do Mercosul.
O Ministério da Economia estima que, nesse período, o PIB brasileiro ganhará, graças ao acordo, US$ 125 bilhões, em valores correntes. Seria o equivalente a um impacto anual de 0,45 ponto percentual no crescimento econômico. É essencial lembrar que o crescimento, para repetir o lugar-comum, é a província dos pequenos números. No caso brasileiro, tal diferença significa um ganho de meia década para dobrar o padrão de vida da população.
Embora toda negociação comercial seja dominada por “concessões” feitas para “proteger” mercados das importações e “abrir” para as exportações, e essa discussão domine as manchetes, trata-se de uma visão equivocada do livre-comércio. O mais importante não é a minoria que exporta este ou aquele produto – sejam carnes, carros ou remédios –, mas a maioria que, com o perdão do jogo de palavras, importa.
Ao permitir importar mais barato, o livre-comércio libera recursos para fazermos aquilo em que somos mais eficientes, aumentarmos a produtividade e, em consequência, a renda da população. Se o que produzimos é exportado ou não, é relevante apenas para os vendedores. O verdadeiro ganho é de quem importa pagando menos, a maioria.
Depois de assinado e ratificado, o acordo Mercosul-UE criará a maior área de livre-comércio do mundo, com 780 milhões de habitantes e PIB perto de US$ 20 trilhões. Estar dentro dela poderá representar não apenas uma abertura de mercados, mas também da mentalidade fechada, que historicamente impede o Brasil de participar das decisões planetárias na medida da nossa dimensão.
Fonte: “G1”, 02/07/2019