Um país falido, um governo inepto, instituições políticas em frangalhos, o povo alijado do poder. Soa familiar? Pois assim era a França em 1789, às vésperas da revolução. Quando o rei Luís XVI abriu os Estados Gerais, em 5 de maio, não poderia ter ideia do que estava por vir nos anos seguintes. Cinco meses depois, ele era arrancado de seu palácio à força, e dali a três anos sua cabeça rolava na guilhotina, depois de uma sucessão de assembleias, convenções e novas leis e regulamentos, produzidos sob a égide de um regime cuja pretensão era reinventar tudo do zero. O período brutal de medo, arbitrariedade e morticínio ficou conhecido por um nome que usamos até hoje: o Terror.
Na Revolução Francesa nasceram conceitos ainda usados, como direita e esquerda. Vista como marco do fim do absolutismo, inspiração para dezenas de outras rebeliões no mundo, ela instaurou na mentalidade ocidental a mitologia revolucionária, disseminada pelos séculos seguintes da Rússia a Cuba, da China à Venezuela. A revolução foi o resultado imediato do clima de contestação promovido na Europa pelo Iluminismo. Não foi preciso esperar muito para descobrir que, em nome da razão e das luzes, sob a pretensão nobre de defender os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, a tirania estava à espreita, e os crimes mais brutais eram cometidos.
Um dos primeiros a perceber isso foi o político e pensador irlandês Edmund Burke. Num panfleto publicado em novembro de 1790, Burke foi capaz de prever com uma precisão impressionante os acontecimentos dos anos seguintes: o fracasso da política econômica, os inevitáveis conflitos gerados por inovações políticas não testadas, a fratura nas Forças Armadas, com a consequente convulsão social e um banho de sangue hediondo. Obra odiada pelos marxistas, vista como fundadora do pensamento conservador contemporâneo, “Reflexões sobre a revolução na França” é leitura fundamental para qualquer um que queira entender os riscos embutidos em qualquer ideologia revolucionária e nas ambições desmedidas daqueles que, a pretexto de corrigir injustiças, desprezam todo arranjo político estabelecido e pretendem implantar o início de uma nova era. O conservadorismo de Burke permanece paradoxalmente moderno nos dias de hoje, em que estamos sujeitos a todo tipo de demagogo e populista.
Embora fosse um orador e polemista de prestígio, Burke estava em fim de carreira no Parlamento em Londres, isolado politicamente em seu partido, os Whigs – era um Jarbas Vasconcelos no PMDB de então –, quando começou a responder a uma carta de um francês sobre os acontecimentos. A resposta evoluiu para um livro de centenas de páginas, escrito naquele estilo que mistura ironia e raciocínio afiado, tão frequente nas letras irlandesas. Sua posição para falar do assunto era única. Filho de mãe católica, podia fazer a defesa, na França, dos valores da Igreja sobre a qual era obrigado a se calar na Inglaterra. Apoiara a independência dos Estados Unidos anos antes, então não é suspeito para argumentar que, no caso francês, os ideais iluministas serviam apenas como pretexto para, em nome da mudança, instaurar a vingança. “Esse tipo de gente está tão tomado pelas teorias sobre os direitos do homem que esqueceram totalmente sua natureza”, escreve. “Sem abrir uma nova avenida para a razão, conseguiram interromper as que levam ao coração.”
Burke não era, por princípio, contra mudanças nem a favor do absolutismo real. Ao contrário do que fazem crer aqueles esquerdistas que nunca o leram, sua posição é mais sutil. Ele enfatiza, antes de tudo, a forma como as transformações deveriam ter sido implementadas. Encontra, na própria Inglaterra, um exemplo de como corrigir as limitações de um sistema político sem rupturas brutais, sem cair no dilema falso entre “o despotismo do monarca e o despotismo das multidões”. “Não desconheço as falhas e defeitos do governo subvertido da França”, diz. “Mas será que era tal que fosse incapaz ou não merecesse reforma; tal que houvesse necessidade absoluta de que todo o tecido fosse rasgado, e a área limpa para erguer um edifício experimental teórico no lugar?”
Hoje é possível criticar Burke por defender o papel da religião na política, pelo antissemitismo ou pela desconfiança a priori de “filósofos” e intelectuais – teses persistentes entre conservadores. Mas é impossível deixar de aplaudi-lo por valorizar as instituições consagradas, o respeito à tradição e ao tempo necessário para qualquer mudança. “A sociedade é de fato um contrato”, afirma. “Como os resultados não podem ser obtidos em muitas gerações, ela se torna uma associação não apenas entre aqueles que vivem, mas entre aqueles que vivem, aqueles que estão mortos e aqueles que estão por nascer.” Não adianta guilhotinar o rei e achar que tudo mudará. Todo político deveria ter isso em mente.
Fonte: Revista “Época”, 10/01/2016
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