O olhar é tudo. De um viés oficial balizado pelo eurocentrismo e pela experiência americana clássica, o Brasil oficial é uma balela. Aqui não havia nada: nem lei nem rei. Os mandamentos e as ordenações elaboradas pelos letrados (que Sérgio Buarque de Holanda chama, no seu clássico Raízes do Brasil, de “eruditos”) seriam “em verdade criações engenhosas do espírito, destacadas do mundo e contrárias a ele”. Haveria um autoritarismo da lei como compensação para a anarquia social reinante. Numa sociedade tida como desordenada, a lei e o Estado ordenariam a confusão.
Eis um despojado resumo de um conjunto de observações pioneiras sobre as relações entre Estado e sociedade no Brasil. De um lado, um acervo de leis abstratas porque universais difíceis de serem cumpridas; do outro, a cumplicidade de instituições e costumes anárquicos tornam a lei um obstáculo e um testemunho contundente de que as coisas não funcionam.
Mas se olharmos esse mesmo Brasil como um sistema de instituições e costumes – como um sistema cultural, o que vemos é um todo ordenado verticalmente, no qual a busca não é para quem está ao nosso lado, mas para quem está em cima ou embaixo. Daí o discernimento de Tom Jobim – um músico -, o que, nessas coisas, tem um peso considerável, quando ele afirma como o sucesso – essa categoria social dos países competitivos e meritocráticos que ordenam horizontalmente o mundo – é uma ofensa pessoal no Brasil. Vale grifar o pessoal porque o problema foi e ainda é quem faz ou é acusado de fazer e não o que foi feito. O jogo é complexo: quanto mais leis, mais os elos pessoais (hoje poderíamos falar em laços partidários) se reforçam e as neutralizam como eu disse em 1979, no livro Carnavais, Malandros e Heróis. Um ensaio que pela primeira vez se afirma, usando Tocqueville, como o Brasil era muito mais aristocrático do que supunha o nosso vão republicanismo.
Gilberto Freyre, um outro intérprete modelar, não fala em leis nem no Estado. Para ele, pelo menos no seu livro mais popular, “Casa Grande & Senzala”, o Brasil aparece apenas como um “sistema social total” como dizia Marcel Mauss. O que movimenta a sociedade brasileira é o patriarcalismo escravocrata. São os valores familísticos que permeiam o Brasil.
Trata-se de outra perspectiva. Se olhamos a máquina administrativa, a sociedade seria anárquica; mas se o ponto de vista é o da casa grande e da senzala com seus antagonismos em permanente equilíbrio, não atinamos com o fato de que a escravidão tem um preço e que existe toda uma legislação que não apenas legitima a presença do escravo como um morto-vivo no sistema, mas as regras a serem seguidas no parentesco, no compadrio e na amizade.
Se você, leitor, está achando tudo isso muito abstrato, leia com calma os diálogos amorosos e paternais entre Carlos Cachoeira e Demóstenes e entre eles e os seus prepostos e desses subordinados entre si. Sérgio tem razão na hipótese da lei contra o costume; mas Freyre também tem razão ao enfatizar o patriarcado escravocrata contra o mundo da “rua” com suas leis ou posturas que deveriam valer para todos, exceto para os fidalgos, para os altos funcionários do governo e para os “homens bons”. Nesse Brasil, ninguém queria ser um “peão”. Um mero plebeu ou “cidadão”. Sim, porque esse último escândalo cujo centro é o laço íntimo (e, sem dúvida amoroso) entre empresários, um contraventor, nobres governantes e ilustres fidalgos, administradores do executivo, legislativo e judiciário é legal e legítimo em muitas dimensões, mas obviamente está fora da ordem igualitária. Ele revela como persiste no Brasil a figura do “cidadão de bem” (réplica moderna do “homem bom”) por contraste cultural com “cidadão comum”. Esse merda que somos todos nós.
Como cidadão você paga sendo sujeito da lei, como amigo dos “caras”, porém, anulam-se em nome da lei (mas não da eficiência ou do mérito) as regras que governam o Brasil como Estado nacional. O caso Cachoeira e quejandos revela como o Brasil dos palácios (ou casas grandes) tem regras e éticas. Só que elas não são discutidas em função dos requisitos de uma governabilidade num universo globalizado e digital onde a transparência é uma dimensão (queiramos ou não) crítica do poder e do gerenciamento público em geral.
O que os jornais estampam não é algo fora do comum. Todos temos uma lealdade absoluta (e comovente) com nossos amigos, parentes, compadres e subordinados que (de modo regular) pagam o pato como os nossos delúbios e aloprados. Agora, o que os jornais não falam é a força destes elos que são mais potentes do que os decretos e normas que gerenciam os serviços e o bem comum – aquilo que é definido como sendo de todos, mas que – eis o óbvio ululante que ninguém vê – é governado por pessoas que, por serem pessoas, são precisamente os nossos afins, pais, irmãos e companheiros. Nossos camaradas e amigos de fé. Esses homens bons, todos maravilhosos em pessoa e todos complicados quando se trata de distinguir o legal do ético no uso da coisa pública.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 02/05/2012
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