“Que distância tão sofrida! Que mundo tão separado!”, diz a letra de uma música de Chico Buarque e Pablo Milanês.
Que distância é essa? Será aquela que fez nossos antepassados empreenderem longas viagens, migrações em busca de alimento e clima mais ameno? Será aquela que os motivou a construírem embarcações toscas e partirem em busca do desconhecido?
Mas distâncias, mesmo físicas, nem sempre são tão difíceis de vencer, afinal, diz o ditado que “toda caminhada começa com o primeiro passo”. Além disso, estar muito próximo também não significa que a caminhada entre dois pontos seja curta. Um abismo ou um rio caudaloso podem tornar intransponíveis poucos metros.
O ser humano, no entanto, aprendeu, ao longo de milênios, a sobrepujar obstáculos impostos pela natureza. Usou sua inteligência para entender, equacionar e solucionar vários problemas. Por conta disso, criou outros tantos, é bem verdade, talvez por focar demais num aspecto, perdendo a noção do todo.
Mas, da mesma forma que criou meios para encurtar distâncias físicas, também criou mecanismos, abismos e barreiras para não deixar entrar ou sair.
Fortalezas, soldados e mercenários bem pagos garantiram o poder de elites, inclusive reis que, embora afirmassem que sua realeza era por vontade dos céus, tornavam a vida de seus súditos um verdadeiro inferno. Estes se serviam de outra espécie de barreira, a psicológica, cujo mais antigo exemplo talvez seja a estratificação social: as castas, obstáculos zelosamente cultivados, de geração em geração, pela doutrinação violenta, física, cultural ou religiosa promovida por quem vive do ódio e da dissensão entre os povos. Quem preza e zela por esses “princípios” o faz porque precisa de seguidores cegos e incondicionalmente obedientes, condicionados desde a infância a crerem que são livres, ou que tudo o que os mandam fazer é em prol de ideais nobres ou divinos, que são pródigos na verborragia retórica de seus líderes, mas raríssimos em suas práticas.
As distâncias culturais, ideológicas e afins são, então, barreiras intransponíveis?
Dependendo dos interesses de poder de quem as constrói, sim! Pois, alguns preferem a humanidade dividida para poderem conquistar e reinar sobre partes dela. Fazem até guerras santas, para mandarem seus “súditos” à morte. Afirmam que um ser humano, apenas por ser ou pensar diferente, é inferior, ímpio ou inimigo. Justificam-se em usos e costumes milenares, e não admitem que uma única vírgula de suas cartilhas seja mudada; mas servem-se das mais modernas tecnologias para destruir mentes e corpos, impedir ou separar relacionamentos que “contaminem” a “pureza” de seus princípios inquestionáveis.
Nesse modelo, caminhos físicos e psicológicos são semelhantes aos trilhados por rebanhos, cujo destino é o abate ou, no mínimo, a tosquia. Aí, liberdade tem todos os significados que os poderosos desejarem dar à palavra, inclusive escravidão: liberdade de obedecer sem questionar ou duvidar!
Mas o ser humano tem limites, embora alguns demorem uma eternidade para serem atingidos, dependendo da força e da precocidade da doutrinação. É quando surgem as revoluções, geralmente precedidas por abusos e mártires, que nem sempre foram o que dizem deles. Mas lendas e mitos também são meios para dominar e submeter mentes. E nem todo revolucionário quer libertar seu povo! A história contada pelos vitoriosos nos mostra que mesmo as revoluções mais “poéticas” desbancaram uma elite arrogante, insensível e violenta para estabelecer outra, que logo assumiu o mesmo papel. A revolução que era “do povo”, de repente passou a ser encarnada por seus líderes, que passaram a acreditar que eles eram a revolução. Daí para frente, não há mais ideologia, apenas afã de se perpetuar no poder a qualquer custo, preferencialmente pago pelo povo que dizem representar.
O Sec. XX teve seus dois maiores embates entre a democracia e o totalitarismo, e entre o capitalismo e o comunismo.
Os campos gelados e cidades famintas de uma Rússia devastada pela Primeira Grande Guerra foram solo fértil para o surgimento de um regime político que se dizia popular, mas pelas mãos de Stálin, viu milhões de patrícios sucumbirem em campos de trabalhos forçados ou fuzilamentos sumários.
Uma Alemanha espezinhada pelo Tratado de Versalhes, fez florescer o nazismo, que recuperou o orgulho de um povo humilhado, mas mergulhou o mundo numa carnificina que matou milhões, dos campos de batalha aos de extermínio, na Segunda Guerra Mundial.
Hitler pregava a supremacia ariana; Stálin, a do povo soviético. O que tinham em comum, então? O totalitarismo e interesses territoriais, travestidos de étnicos, no Leste Europeu.
Mas o comunismo ameaçava o mundo capitalista. Assim, o iminente conflito entre alemães e soviéticos, apesar de pactos de não-agressão protelatórios, fez com que muitos países fechassem os olhos para o expansionismo do III Reich e barbaridades a ele associadas.
Aí, Inglaterra e França declararam guerra à Alemanha!
Poucos meses depois, bandeiras com a cruz suástica tremulavam por quase toda Europa.
O Japão atacou os EUA, que só assim entraram efetivamente na guerra.
De repente, os arqui-inimigos soviéticos viraram aliados! Os “comedores de criancinhas”, antes demonizados pela mídia e poder econômico ocidental, mereceram até filmes de Hollywood, como “Canção da Rússia” (Song of Russia, EUA, 1944), que tinha o astro Robert Taylor como protagonista. Tudo porque o front oriental era indispensável para dividir as forças alemãs, sempre poderosas, mas já reduzidas em seu poder de ataque, posto que diluídas em exércitos de ocupação.
Moscou quase caiu, mas um pacto de não-agressão com o Japão permitiu que outros exércitos soviéticos reforçassem as defesas, também auxiliados pelo mesmo “general inverno” que um século antes já havia derrotado Napoleão Bonaparte. A partir daí, a exército vermelho tornou-se um terrível “rolo compressor”, que “libertou” todo Leste Europeu do jugo nazista, para ali implantar “democraticamente” o comunismo.
Os “amigos” soviéticos voltaram, então, a ser uma ameaça ao mundo capitalista. Agora, a corrida era para ver quem chegava primeiro à Berlim, o “troféu” que todos cobiçavam!
A Conferência de Yalta estabeleceu que a cidade deixaria de ser capital e seria divida, bem como o mundo de então. Afinal, a Alemanha já provocara duas guerras mundiais: deixá-la como antes de Hitler, seria gerar novo “ovo de serpente”. Melhor seria dividi-la e ocupá-la. E assim foi.
Mas esse limite urbano era quase simbólico, tendo o Portal de Brandenburgo como principal referência. Lembro de ver um filme, “Cupido não tem bandeira” (One, Two, Three, EUA, 1961), uma comédia estrelada por um dos ex-vilões-mor de Hollywood, James Cagney, em que bastava dar um engradado de refrigerantes aos guardas de fronteira, para passar de um lado ao outro.
Mas, num certo (ou seria errado?) dia 13 de agosto de 1961, um domingo, pouquíssimo tempo depois do lançamento do filme, surgiu, da noite para o dia, um muro que separou famílias, amigos e esperanças. Um muro construído para durar cem anos, um décimo dos mil previstos por Hitler para seu Reich. Antes dessa obra de morte, cerca de 2,7 milhões de alemães já haviam passado do lado oriental para o ocidental.
Para quê esse muro? Se o regime comunista era tão bom como seus líderes apregoavam, porque essas pessoas o abandonavam, com risco de perseguição e morte?
Dos dois lados havia “liberdades” e governos “democráticos”, só que um exigia que as pessoas fossem “livres” e “felizes”, enquanto o outro oferecia outras opções, mas sem nenhuma garantia. Esse muro foi chamado de vários nomes: Muro da Vergonha, Cortina de Ferro ou, simplesmente, Muro de Berlim, símbolo de um mundo dividido em três, sendo que o Primeiro e o Segundo, capitaneado por duas superpotências, que fizeram e desfizeram por muitas décadas com o Terceiro.
Um simples e estreito muro, comparado com a enorme distância que representou; distância tão grande que milhões levaram uma vida para atravessá-lo, outros a perderam na estupidez ideológica das balas de soldados quase autômatos em sua doutrinação.
Um obstáculo à compreensão dos povos, à miscigenação de ideias; um monumento à luta do bem contra o mal, onde o bem era difícil de notar e o mal quase sempre venceu.
De um lado a OTAN, do outro o Pacto de Varsóvia, e pelo mundo afora guerras civis que alternavam ditaduras de esquerda e direita, que oprimiam seus povos, cada um de sua forma.
Do lado ocidental: Mercedes, Audi, Opel, Adidas, Baader Meinhof, uma baita seleção de futebol; na parte Oriental: Trabant, equipamentos óticos de alta precisão, nadadores “turbinados”. Capitalismo selvagem contra a internacionalização do comunismo; golpes de estado tramados pela CIA, contra atentados terroristas financiados pela KGB; apoio financeiro e militar a tiranos de extrema direita, contra movimentos revolucionários, que pregavam a libertação de uns, para se submeter a outros; culto ao lucro a qualquer custo, contra o culto à personalidade.
Paradoxo dos paradoxos, uma curtíssima distância não podia ser transposta a pé, mas a corrida espacial lançava foguetes a distâncias cada vez maiores; a corrida armamentista colocava milhares de soldados dos EUA no Vietnam e mísseis nucleares em Cuba.
Esse mundo dividido, cheio de espiões e contraespiões, conselheiros militares, oficiais políticos, porém, ajudou a reduzir brutalmente, literalmente, o colonialismo territorial no mundo. Mas o econômico permaneceu intacto, capitalista ou comunista!
Aí, um belo dia, “Tio Sam” percebeu que apoiar tiranos não era a melhor solução para seus interesses. Afinal, o “xerife” do mundo não precisava de representantes!
A partir daí começou a derrocada da URSS, que parou de financiar partidos e revoluções no exterior, deixando “órfãos” milhares de camaradas, alguns dos quais, de tanta frustração, “endireitaram-se”. Alguns viraram maoístas, até que a China capitalizou-se. Outros ainda se agarram a Cuba, com unhas, dentes e barbas.
A URSS, em crise econômica, tirou suas tropas da Alemanha Oriental. Mas o muro ainda estava lá, os terríveis mecanismos de repressão também.
A Alemanha Oriental vivia um impasse: o partido comunista, sem apoio militar da União Soviética tentava manter sua identidade e poder, mas não representava o povo, se é que um dia já o representara, e se é que algum partido político, da extrema direita à extrema esquerda, mesmo nos dias de hoje, representa alguma coisa que não seja os interesses das elites ou líderes carismáticos que os sustentam ou dominam.
Os radicais foram caindo um a um, até que o porta-voz do Comitê Central, durante entrevista à TV estatal, em 9 de novembro de 1989, perguntado sobre quando seus irmãos (e não mais “camaradas”) teriam permissão para viajar livremente, afirmou: “Podem ir para onde quiserem, e ninguém irá detê-los.” (DURSCHMIED, 2003, p. 359). Dizem que a afirmação não foi intencional, mas acidental, mero discurso.
Entre surpresos e esperançosos, milhares de alemães reuniram-se dos dois lados, pedindo a abertura dos portões a oficiais acostumados, mas também cansados de cumprir ordens à risca. Um foi aberto, seguido de outros e, de repente, não havia mais duas Berlim nem uma Alemanha dividida. A Alemanha Ocidental, uma das três maiores economias do mundo de então, abria mão de seu status para voltar a ser apenas Alemanha.
A liberdade levara mais de 28 anos para transpor alguns metros de distância!
O que veio depois? Unificação da Europa, rompendo outros “muros”, alguns dos quais centenários.
Isso quer dizer que o capitalismo venceu o comunismo?
Essa é uma pergunta de difícil resposta, pois tanto Max Webber como Karl Marx têm bons argumentos. O problema é como suas ideias foram interpretadas e aplicadas por seus “herdeiros”, discípulos ou adeptos.
O medo da comparação e do livre-arbítrio leva alguns a adotarem a doutrinação, o patrulhamento ideológico, indução ao abandono do individual em nome de um coletivo intencionalmente dirigido, segundo interesses nem sempre claros. Nesse contexto, todos tendem a ser vítimas.
Mártires ou criminosos? Bem depende do lado em que se está nesse maniqueísmo. Mártires e heróis, assim como vilões, podem ser produzidos da noite para o dia: luzes que podem iluminar ou cegar.
Produzir fanáticos? Bem, isso leva um pouco mais de tempo.
O Muro de Berlim caiu! Mas, e quanto ao Paralelo 38, zona desmilitarizada, muro virtual que ainda separa as duas Coreias? O macartismo, na década de 1950, também não foi um muro? Ainda existe Guantánamo!
Muitos muros foram construídos para proteger, é verdade. Mas quantos foram construídos e ainda existem como monumentos da intolerância, da incapacidade de entender e respeitar as diferenças e o livre-arbítrio? Não existe um entre os EUA e o México? Outro na Cisjornânia? Vários nas aduanas dos países ricos?
Estes também não são “muros da vergonha”, e não apenas para os que os construíram? Apenas um dos lados está certo ou errado?
É certo que os muros físicos impressionam mais que os psicológicos, vide a Muralha da China. Mas o material pode ser facilmente abatido. O mesmo não se pode dizer dos muros culturais e religiosos, que persistem e são cuidadosamente conservados em nome da discórdia.
Mas vale lembrar o que Max Frisch afirmou sobre esse monumento chinês:
A Grande Muralha, destinada a ser um escudo de proteção contra as raças bárbaras das estepes, é uma das tentativas tantas vezes repetidas de deter o tempo. Como sabemos hoje em dia, isso não funciona. Simplesmente não se pode deter o tempo (FRISCH apud DURSCHMIED, 2003, p.355).
E o tempo é como o vento, que pode moldar com a paciência de milênios, ou arrasar, com o ímpeto avassalador e imprevisível das tempestades. Vento que é ar em movimento, mas também movimenta a civilização, como a música que o grupo alemão Scorpions lançou em 1990: Wind of Change, que veio juntar-se a Imagine, de John Lenon, como exortações à ruptura de todos os muros, materiais e imateriais que separam não só territórios, como credos, gêneros, raças, etnias, castas, condições sociais: muros virtuais que separam até quem está ao lado. Essas desigualdades que os elevam são inexoráveis ou simplesmente partes de projetos de poder?
O mundo tem muitos problemas para resolver. Problemas que afligem todos, indistintamente, e que não podem ser resolvidos sem consenso e bom senso.
Não vai ser erguendo muros ou ficando sobre eles que a humanidade solucionará questões demográficas, sociais, energéticas e climáticas.
O vento tem essa capacidade de misturar o que está separado, levar sementes que germinam a milhares de quilômetros.
O mundo precisa urgentemente desse vento transformador, para aproximar o que a estupidez humana e a mediocridade tirana ainda insistem em manter separado!
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