Repito o que tenho dito sobre o Decreto 7.037, de 21 de dezembro passado, assinado pelo presidente da República e referendado por 28 dos trinta e tantos ministros de Estado; lido ou não lido pelo chefe do governo, foi publicado no Diário Oficial e entrou em vigor, como assegura seu último artigo; independentemente de seu mérito, ele existe. No entanto, confesso lisamente, tenho dificuldades em entendê-lo; em si mesmo é um enigma.
Ninguém ignora que o presidente pode baixar decretos, mas é evidente que não lhe é dado expedi-los sobre tudo; ele pode ter ideias arraigadas acerca do cumprimento das saias femininas ou do chapéu para homens e mulheres, mas não pode editar decretos sobre assuntos estranhos ao seu mister; aliás, a própria Constituição dimensiona seu poder de modo a assegurar a fiel execução das leis. Contudo, o ato presidencial não invoca esse preceito, mas o de “dispor mediante decreto, sobre organização e funcionamento da administração federal”.
Todavia, a regra fundamental da administração diz respeito à legalidade. Não precisava dizer, mas disse de maneira explícita e solene. De modo que decreto algum pode contrariar a lei, a partir da lei maior até as leis ordinárias. No entanto, o decreto aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e o anexo que o complementa, e, se o decreto enumera seis “eixos orientadores e suas respectivas diretrizes”, o anexo se estende por 92 páginas, onde tem de tudo.
Assim, o decreto institui “o Comitê de Acompanhamento e Monitoramento do PNDH-3”, integrado por representante e suplente de cada um dos órgãos que enumera, sendo quatro de secretarias da Presidência da República e de 17 ministérios; não fica aí; o secretário especial dos Direitos Humanos da Presidência da República designará os representantes do “comitê” e este “convidará representantes dos demais poderes, da sociedade civil e dos entes federados para participarem de suas reuniões e atividades” e, excusez du peu, “os Estados, o Distrito Federal, os municípios e os órgãos do Poder Legislativo e do Ministério Público serão convidados a aderir ao PNDH-3”.
Esquecia-me de dizer que o “plano” foi concebido “em consonância com as diretrizes, objetivos estratégicos e ações programáticas estabelecidos, na forma do anexo deste decreto”. “Objetivos estratégicos” não dizem coisa nenhuma, mas têm o sortilégio de ensejar o que se queira. Como se vê, o decreto dilui a divisão dos poderes e ainda, insatisfeito, ameniza a federação.
O leitor há de dizer que o artigo está cacete e eu não direi o contrário. Mas cacete mesmo é o anexo, a despeito de seus “objetivos estratégicos” ou por causa deles. Aliás, na “organização e funcionamento da administração federal”, a que se refere o art. 87, IV, “a”, da Constituição, expressamente invocado pelo presidente para produzir o famigerado decreto, não cabe bulir em direitos individuais expressos, nem assenhorar-se de prerrogativas também constitucionais dos poderes Legislativo e Judiciário, como faz, licenças quiçá inspiradas nos “objetivos estratégicos” da maçaroca.
(“Zero Hora”, 08/02/2010)
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