Quando Juscelino Kubitschek resolveu construir Brasília bem no miolo do longínquo Estado de Goiás, tinha na cabeça, ou no coração, alguma fantasia sobre as virtudes do “centro”. Plantada bem no meio do mapa do Brasil, a capital federal estaria num ponto equidistante entre os extremos e mais propensa a encontrar os denominadores comuns entre os diversos radicalismos, regionais ou ideológicos. Foi assim que, na utopia de concreto do Distrito Federal, a geografia serviu de metáfora para a política. Instalando o centro de decisões no centro do continente, JK quis fundar uma forma de governo que ficasse mais perto de todos, por igual.
[su_quote]O Brasil precisa de um centro afirmativo, não envergonhado[/su_quote]
É verdade que, hoje, a gente tem a sensação de que Brasília fica longe de todo mundo e só dá ouvidos para os interesses mesquinhos daqueles seres estranhos que fazem negócios por lá. Isso não significa, no entanto, que o sonho de JK fosse despropositado. O vexame brasiliense de nossos dias não prova que ele estivesse errado. Ele apenas acreditou que os desnivelamentos do país poderiam ser superados pelas virtudes do centro geográfico.
A ideia de centro sempre esteve associada à prudência e à sabedoria. A ética de Aristóteles, por exemplo, ensina que a virtude está no meio. Sem pender demasiadamente para o excesso (o esbanjamento) e sem se amofinar na escassez obsessiva (a avareza), o homem encontrará a justa medida das coisas. Um equilibrista que caminha sobre um fio de aço entre dois arranha-céus sabe muito bem disso. Se não estiver consciente de seu “centro de gravidade”, em todo o trajeto, ele cai. Mais ou menos pela mesma razão, os seguidores do psicólogo Carl Gustav Jung recomendam a seus pacientes que fiquem “centrados” para não sair fazendo besteira por aí.
Nada de errado com os equilibristas, com os junguianos ou com a localização de Brasília. É na política – e não na filosofia, na psicologia ou na geografia – que essa história de centro se complica. Os cientistas políticos dizem que a disputa do poder nas democracias contemporâneas tende ao centro. Até aí, até parece simples. Mas o que eles querem dizer com isso, exatamente? Em resumo, é o seguinte: eles acreditam que a maioria dos eleitores fica no centro do espectro ideológico – e espectro ideológico, você sabe, é aquela linha imaginária, mais ou menos reta, que se estende de um ponto que seria a extrema-esquerda até outro ponto, que seria a extrema- direita. De acordo com esse modelo, os candidatos que não saem da extrema-esquerda ou da extrema-direita acabam isolados em segmentos minoritários e perdem as eleições. Para ganhar, é preciso migrar para o centro, onde estão os votos que decidem.
Acontece que, no centro, as identidades perdem sua nitidez. Ficam mais fracas. Seria por isso, ao menos segundo os cientistas políticos, que o PT de hoje parece um PMDBzão de barba, uma ameba continental sem muita consistência ideológica. Ao correr para o centro em busca de votos, teria perdido sua identidade. Que dentro da legenda exista um pessoal chegado em embolsar o Erário é um detalhe, quase uma nota de rodapé na ciência política. O centro, na política, é um conceito ideológico, não ético. E esse conceito ideológico tem identidade fraca.
O centro não passa de uma espécie de média aritmética entre a esquerda e a direita. Se uma ou outra for mais para lá, o centro muda de lugar, entendeu? Estamos falando de um conceito relativo, tão relativo que quem fica muito no centro se perde de suas próprias convicções. Concluindo: se em Aristóteles, na geografia, em Jung ou na arte do equilibrismo o centro é uma virtude, na política o centro tem esse aspecto de, digamos assim, ausência de caráter. Tanto que ninguém gosta de se declarar “de centro”. Quando muito, o sujeito diz que é “de centro-esquerda”.
É uma pena que nossa cultura política tenha se acomodado nisso. É uma pena que “centro” tenha virado sinônimo de falta de identidade. Pena mesmo, pois o que mais falta ao Brasil hoje é uma corrente política que tenha coragem de enxergar soluções tanto na tradição socialista como na tradição liberal e, a partir dessa capacidade, produzir consensos suprapartidários. O Brasil precisa de um centro afirmativo, não envergonhado. Programático, não eleitoreiro.
Também na política, o centro, quando autêntico e renovador, pode ser uma virtude. A saída passa por aí. A única saída passa por aí. Para a política brasileira, o centro se tornou vital. Terá de ser construído com radicalidade, quase que com extremismo (de centro). Pode parecer contraditório, mas é apenas obrigatório.
Fonte: Época, 15/11/2015.
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