Transcrevo, com as omissões devidas, uma carta que recebi do professor Richard Moneygrand.
Um estado de transição tem um pouco do agora e do depois sem, entretanto, ser nenhum dos dois. Vocês não sabem onde o vendaval (ou a “tempestade perfeita” como alguns chamam) vai desabar, mas não podem deixar de pressenti-lo. Ela tem a sua própria realidade, a qual demanda posicionamentos e atitudes nem sempre confortáveis porque todo drama exige confronto entre liberdade e determinismo.
Alguns sugerem examinar as contradições e paradoxos vividos; outros, querem uma revalidação de princípios e valores que marcaram os erros desta fase histórica, os quais faliram precisamente porque as pessoas e o partido que administrou o país são os principais atores deste momento indeciso. Indecisões, acentue-se, promovem a crítica a valores ditos como indiscutíveis. No caso do Brasil, uma história transcendental que iria libertar os oprimidos e os miseráveis e os diretores dessa fase tidos como politicamente invencíveis.
Uma das dimensões deste momento liminar tem a ver com o desmascaramento dos salvadores do Brasil. A era inaugurada faz mais de uma década pelo governo de “esquerda” revelou teimosamente personagens tão ou mais ávidos de enriquecimento pessoal do que os velhos e abomináveis mandões do mal dos filmes de Glauber Rocha. A revelação cínica de que o sujeito é honesto até chegar ao poder, quando se transforma num canalha, é um dos dados mais fortes deste “onde estamos” de vocês.
Afinal, há ou não uma boa noção de quem fez alguma diferença, liquidando a inflação e governando com competência e bom senso? Entre a administração de FHC (acentuada pelo reestabelecimento do dinheiro como um valor estável); e a era do absolutismo petista de Lula e de sua invenção, a gerentona Dilma, se desmascara ou não – pergunto – o viés acentuado pelos arranjos políticos e por um ruidoso aparelhamento do Estado em benefício de um projeto de poder contrário ao regime liberal em qualquer manifestação de capitalismo? Sobretudo desse capitalismo sem peias como o vosso? O sono do Brasil não teria como base a crença numa resolução messiânica para todos os seus problemas; daí a atração pelo conceito de “revolução” em toda a latinidade americana, quando – agora – acho que vocês começam a desconfiar que nada neste mundo de Deus pode ser resolvido paulatinamente, a não ser por todos e cada um? E com a descoberta de que para se viver num país igualitário é preciso dizer não aos amigos e, acima de tudo, a si mesmo?
As crises marcadas pelo enriquecimento pessoal rápido, absurdamente ganancioso e ardiloso dos políticos no poder em carreiras que confundem o técnico e o político, não foram inventados pelos vossos jornais e cronistas reacionários e antigovernistas. Não é a mídia que inventa o desaparecimento do avião, os assassinatos de meninos por meninos nas escolas americanas, os escândalos da Petrobrás, o desacerto do gerenciamento e de um Brasil alarmantemente desconsertado. São os fatos inexoráveis nas suas contradições – um governo do povo que tira desse povo – que engendram interpretações, promovem vergonha e demandam apurações.
Contemplar a liberdade sem nenhuma contrapartida de responsabilidade produz – ao lado de estruturas mal discutidas como o estilo aristocrático de vida do Brasil onde uma pequena camada pode usar o proibir definitivo do proibido proibir – uma poderosa demanda de igualitarismo que ninguém tem a coragem de conter. Sobretudo, num ano eleitoral. Trata-se de um drama em que movimentos geram movimentos de movimentos, cada qual o mais extremado e contraditório.
Vocês estão passando do “não pode” ao “tudo pode”. Quem vai tirar o Brasil do seu leito de gigante adormecido?
Vai ser um programa baseado na consciência de que não é mais admissível usar o Estado como instrumento de enriquecimento pessoal? Vai ser o uso mais consciencioso do bom senso que impede o emprego partidariamente motivado de dois pesos e medidas como tem ocorrido nesta era lulo-petista? Ou será um jogo com regras que todos conhecem e aceitam como ocorre nos esportes?
O passo adiante vai dizer. E quem vai dar esse passo são vocês.
Take care,
Dick
Fonte: O Estado de S. Paulo, 23/04/2014
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