Quem se lembra de uma ideia impactante apresentada por um dos candidatos à Presidência da República? Ou quem, entre os 3% dos telespectadores que assistiram ao primeiro debate entre os candidatos, na TV Bandeirantes, se recorda de uma proposta inovadora, crível e viável, capaz de chamar a atenção e gerar interesse pela originalidade, expressa por um dos quatro participantes? É possível que alguém lembre a fala de um deles, Plínio Sampaio, mais pelas ironias do que pela densidade das ideias. O fato é que a campanha, sob o prisma do discurso e da mobilização social, não conseguiu, até o momento, empolgar plateias, seja por ausência de novidade, seja pela sensação de que os escopos mais parecem uma teia de retalhos e fragmentos, dispostos um ao lado do outro sobre o pano de fundo de nossa realidade. É inconcebível que áreas vitais como saúde, segurança, educação ou as polêmicas temáticas sobre as reformas (política, previdenciária, tributária e trabalhista) não tenham merecido, até o momento, visão diferenciada de blá-blá-blás e bordões escondidos na frouxa promessa “vamos continuar isso e aquilo, fazer mais e melhor”.
Nos últimos tempos as campanhas ganharam novos adereços, trazidos pela engrenagem da tecnologia da informação e sob o empuxo do Estado-espetáculo, onde os atores procuram esmerar-se na cosmética. Patinam, porém, nos campos da semântica e da mobilização das massas, haja vista a declamação de uma linguagem tatibitate, que mais se aproxima da superficialidade que da argumentação consistente. É provável que a mensagem ligeira e represada expresse a cultura dos formatos burocráticos dos debates televisivos, quando os candidatos são comprimidos entre tempos rígidos para respostas. Mas campanha eleitoral deve ser o espaço por excelência para escancarar a locução. Os proponentes precisam se preparar para desfilar soluções originais e criativas sob orientação de equipes especializadas. Não é o que se vê. Os programas eleitorais, com início na próxima terça-feira, produzirão a liturgia de glorificação dos candidatos, que serão expostos de maneira exuberante. Ornatos, profusão de cores, flagrantes de ruas e pedaços da vida de cada personagem terão mais força que os conteúdos das propostas, arrematando o preceito de McLuhan: “O meio é a mensagem.”
Da naturalidade das ruas para o artificialismo dos laboratórios do marketing – eis a mudança nas feições das campanhas. Abertas, emotivas, participativas tornaram-se fechadas, frias, racionais. Voltemos a 1950, quando Getúlio Vargas fez uma das mais brilhantes campanhas da história eleitoral. Intercalava o ideário abrangente com um discurso para cada canto. Em 10 de agosto, em São Paulo, por exemplo, pronunciou um discurso versando sobre o poderio da terra bandeirante, o dever da União para com o Estado, o saneamento financeiro do País, as diretrizes para uma política industrial e as bases do trabalhismo, concluindo com a exaltação do vínculo entre democracia política e democracia econômica. Ali se descrevia o estado da Nação. Regiões e cidades recebiam uma palavra específica, com diagnóstico e solução para os problemas. Ali estava o conceito de descentralização. Na peroração de São Borja, em 30 de setembro, passava a receita do sucesso: “Da vastidão amazônica a estas fronteiras meridionais, das populações de beira-mar às do Brasil central, o povo me acolheu carinhosamente, e mais me falou dele do que eu de mim, transmitindo-me as suas queixas, as amarguras e dificuldades atuais.” Ouvir o povo, eis o mote.
Juscelino Kubitschek, na campanha de 1955, fez seis viagens pelo País, percorrendo 168 municípios num DC-3, equipado com escrivaninha e cama, e adotando a mesma estratégia de Vargas, a de combinar temas gerais com específicos. Os roteiros cobriam cidades e capitais próximas, o que permitia a Kubitschek conhecer e estudar as questões regionais. Grupos de mobilização puxavam o povo para as ruas. “Batedores”, jovens políticos animados, em peregrinação prévia, faziam reconhecimento do terreno, captando reivindicações, preparando relatórios e arrumando cenários para as concentrações. A campanha de rua arrastava multidões. Os comícios terminavam sempre com perguntas formuladas por ouvintes, em “diálogo com o povo”. Foi assim que o mineiro, ancorado em inseparável sorriso, descobriu a entusiástica reação popular ante a promessa de transferir a capital da República do Rio para o Planalto Central. A novidade deu-lhe um bom diferencial. As temáticas, entremeando situações nacionais e locais, tinham como foco o desenvolvimentismo, a partir das áreas de energia e transportes, com textos elaborados por figuras tarimbadas, como o poeta Augusto Frederico Schmidt, o romancista Autran Dourado e os jornalistas Álvaro Lins, Horácio de Carvalho e Danton Jobim, entre outros.
Mas o sistema eleitoral, é oportuno dizer, favorecia o coronelismo. Cédulas eram produzidas pelos próprios candidatos e distribuídas pelos cabos eleitorais. O eleitor também as encontrava no local de votação. Chapas de adversários dos coronéis eram retiradas das urnas. Os eleitores recebiam envelopes com “o voto certo”. (Eis uma historinha da época: “Coronel, em que estou votando?” Resposta áspera: “O voto é sigiloso, cabra, não é de sua conta.”) Nesse terreno, o País avançou, e muito. O domínio dos caciques decresce, apesar de ainda forte em algumas regiões. Mas nas áreas do discurso e da mobilização das massas há muito por fazer. A descrença e a desmotivação do eleitorado, a pasteurização ideológica, o declínio dos partidos e o distanciamento entre o arco político e a esfera social estão por trás do artificialismo das campanhas eleitorais. Mesmo assim, poderiam ser mais vivas. Bastaria a cada candidato colher sementes na seara do conhecimento e passar a oferecer propostas viáveis e de alto nível. Está na hora de deixar de lado o ramerrão. Sob pena de continuarmos a ver candidato iconoclasta sair aplaudido nos embates da TV. Quanta falta faz uma grande ideia.
(“O Estado de S. Paulo” – 15/08/2010)
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