Priscila Medeiros, que cursa faculdade de Logística, dá uma boa definição do que a Ecos do Futuro significou em sua vida: “Entrei completamente perdida. Sem rumo, sem saber o que fazer da vida, sem ter ideia de aonde poderia chegar.” Filha de mãe doméstica e pai com problemas com drogas, Daniele Tomaz, que faz Gestão de RH, vai na mesma linha: “Se não fosse a Ecos, até hoje eu não teria me encontrado.” Como elas, já foram mais de dois mil jovens entre 16 e 29 anos beneficiados pela ONG desde 2003. São moradores de favelas da Ilha do Governador, do Complexo da Maré e da Baixada, que concluíram ou estão no último ano do Ensino Médio.
Na segunda-feira passada, duas novas turmas, com 25 alunos cada, começaram as aulas. O curso dura oito meses, com quatro horas diárias, de segunda a sexta. A taxa de evasão é de apenas 5%. O carro-chefe da instituição criada por Isabel Correia, Kátia Senna e um grupo de amigas de infância que estudou na rede pública é o programa Ser & Fazer. Financiado pela fundação dinamarquesa Hempel, ele já ganhou duas vezes o prêmio Fundo Itaú Excelência Social na categoria Educação para o Trabalho. A Ecos forma para o mercado ao mesmo tempo em que prepara para a vida.
— Além das técnicas necessárias para a profissionalização, como ter boa comunicação e saber se comportar numa entrevista, o aluno desenvolve a consciência cidadã. Na aula de valores humanos, trabalhamos o respeito à diversidade cultural e humana e o cuidado com o outro — diz Isabel, professora de Sociologia da rede estadual.
Há um parceira com a unidade CCAA da Ilha, que oferece bolsas para os alunos. Já a Estácio desde 2006 cede salas e laboratório de informática:
— E desde 2010 todos os jovens aprendizes da Estácio do Rio são nossos. Hoje são 80. E muitos deles depois viram funcionários de lá — diz Isabel.
O Globo – Como tudo começou?
Isabel Correia – Estávamos entrando na roda vida de reclamar e não fazer nada. Eram horas perdidas em lamúrias angustiantes diante da ineficiência das autoridades, do sucateamento da escola pública, da desvalorização do professor, da falta de empatia, do aumento do desemprego e da violência. Decidimos então transformar reclamação em ação. Focamos nessa faixa etária porque, como diz a Kátia, se você transforma o jovem ele transforma sua família. E você evita que ele abandone os estudos e siga o mesmo destino dos pais. A gente não faz caridade, a gente gera oportunidade. Aqui o jovem desabrocha. A ex-aluna Juliana Pádula, formada em Gestão de RH, diz que a cada dia nós afirmamos neles o sentimento de que podem ser alguém, de que podem conquistar o que quiserem.
O Globo – A taxa de absorção pelo mercado de trabalho dos alunos da Ecos é de 90%.
Correia – Para ganhar autonomia o jovem precisa estar empregado. Mas avisamos: “Não somos agência de empregos, somos uma instituição que vai preparar vocês para o mercado de trabalho e para a vida adulta.” É uma educação humanizada, baseada em valores éticos e solidários, onde o aluno deixa de ser um número para ser uma pessoa, com nome e história. A gente trabalha muito com a pedagogia do afeto. Os jovens se sentem seguros, aconchegados, dizem que aqui é o melhor momento do dia. Promovemos a interação e o diálogo, o que ajuda a superar a timidez e melhorar a autoestima. Entre as disciplinas estão comunicação e expressão, informática, inglês, fotografia social, teatro e história. Há as mais voltadas para o mercado, como relacionamento intra e interpessoal, técnicas de vendas, qualidade no atendimento, educação para o consumo. As aulas são práticas. Em matemática, por exemplo, aprende-se, com jogos e brincadeiras, regra de três, porcentagem, juros. Com isso eles sabem se na hora de comprar o celular vale mais a pena à vista ou a prazo. Na formatura, a professora de matemática é ovacionada. Na Ecos, o futebol de salão é uma ferramenta laboral. Trabalhamos em quadra habilidades que o mercado quer, como respeito, disciplina, trabalho em equipe, foco no resultado, comunicação. Também fazemos visitas de campo a bairros como o Leblon para ver como o poder público trata de forma diferente a cidade. Eles aprendem a cobrar seus direitos.
O Globo – Que outras atividades tem a Ecos?
Correia – Vamos ampliando nossos projetos conforme as demandas. Incluímos a arteterapia porque chegavam alunos desestruturados, com crise de choro e os mais variados problemas em casa. Eram molestados, apanhavam, os pais tinham abandonado a família ou eram dependentes químicos. Criamos um preparatório para o Enem porque antes a faculdade era um sonho distante, mas com o Enem e o Pró-Uni eles começaram a perceber que era possível. Com a crise estamos nos reinventando, já que o setor de comércio sempre foi o principal mercado para nossos alunos. Começamos então uma parceria em 2016 com o curso Educandus, que prepara para a carreira militar e nos dá bolsa de quase 50%. Notamos que alguns alunos vendem em sala doces que fazem, então vamos ter agora a matéria de empreendedorismo. Há um projeto novo de audiovisual, a partir da percepção de que precisamos valorizar as coisas boas. O primeiro tema que eles começaram a estudar é a empatia. Em seguida produzirão vídeos curtos que provoquem reflexão.
O Globo – Cite exemplos de alunos e ex-alunos.
Correia – A Priscilla Martins só pensava em baile funk. Chegava em casa às 6h, bêbada. Era briguenta, xingava. Ela diz: “Eu era uma menina do morro que só queria saber de passar a noite da zoeira e que vivia num ambiente onde todos te jogam para baixo. Estava atolada nesse mundo.” Chegou aqui com um top minúsculo, piercing no umbigo e microssaia. Ganhou confiança e hoje é sargento da Aeronáutica. A Carla Chaves, que estuda veterinária, conta: “Parei de ter pena de mim, de repetir que minha vida era ruim porque não tive oportunidades.” Temos muitas histórias de sucesso, como a Karen Araújo, que hoje estuda Direito e quer ser delegada da PF. Ou a de Victor Andrade, do Morro do Dendê. A mãe dele é esquizofrênica e batia muito nele. Havia largado a escola, e chegou a Ecos triste, sem perspectivas. Hoje é tatuador, coleciona 30 prêmios e ensina sua arte a jovens da favela. Ele fala: “Elas sempre insistiam em nos fazer ver que a gente tinha um lugar no mundo.” O que a Ecos do Futuro faz é acreditar em jovens que ninguém mais acredita.
Fonte: “O Globo”, 2/07/2017.
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