Na aurora de 7 de fevereiro, o nome de Li Wenliang surgiu numa inscrição imensa, desenhada na neve, à margem de um rio chinês.
Três meses e uma pandemia depois, em 29 de abril, a página A5 da Folha foi inteiramente ocupada por um informe publicitário que canta as glórias da China. As duas imagens contam uma história —ou melhor, a inversão de uma história. A operação terá implicações geopolíticas de longo prazo.
O médico Li Wenliang, um dos primeiros a soar o alarme da nova doença, foi calado pelo Estado, contraiu o coronavírus e morreu. A notícia correu nas redes sociais, convertendo-o em herói popular: o símbolo da perversidade do regime.
A página publicitária na Folha traz a voz de Xi Jinping, dublada por um “especialista” brasileiro, um diplomata chinês e o médico-burocrata responsável pela medicina tradicional chinesa. É o segundo funeral de Li Wenliang: o panegírico da “eficiência” sanitária do sistema totalitário.
O primeiro pilar da “guerra da informação” deflagrada por Xi Jinping é a manipulação das estatísticas de óbitos. Segundo os números oficiais, a China encerra sua epidemia com 4.600 mortos, 13 vezes menos que os EUA, onde o vírus continua a ceifar 2.000 vidas por dia.
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Deborah Birx, a chefe da força-tarefa dos EUA para a Covid, classificou a contabilidade chinesa como “irreal”. A palavra quase apareceu num relatório da Comissão Europeia, mas foi suprimida por temor à represália do principal fornecedor de respiradores, máscaras e EPIs.
O segundo pilar é a campanha de “filantropia sanitária”, pela transferência gratuita desses equipamentos e materiais a países em desenvolvimento. Nessa frente, o governo chinês divide o trabalho com Jack Ma, fundador do Alibaba, a “Amazon do Oriente”. A iniciativa faz parte de um projeto muito mais ambicioso, a “rota da seda sanitária”, que almeja converter a China em ator global no setor multibilionário da indústria farmacêutica.
O surto do ebola na África Ocidental, em 2014, foi o palco da aventura pioneira chinesa na política sanitária internacional. Na ocasião, a China cooperou com os EUA, cumprindo papel coadjuvante. Já na “rota da seda sanitária”, ela opera unilateralmente, projetando influência no Sudeste Asiático, na Ásia Central e na África.
A escolha do etíope Tedros Adhanom para a chefia da OMS, em 2017, alavancada por um lobby chinês, converteu a organização em trampolim para a diplomacia sanitária de Xi Jinping na África, que utiliza a Etiópia como cabeça de ponte.
O FMI estima violentas quedas do PIB anual nos EUA (-5,9%), na Zona do Euro (-7,5%), no Reino Unido (-6,5%) e no Japão (-5,2%), mas discreto crescimento na China (1,2%). A crise do coronavírus acelera as tendências prévias de deslocamento do eixo econômico global. Mas o triunfo geopolítico chinês, apoiado na falsificação da história, deriva essencialmente dos fracassos ocidentais.
Os EUA praticaram o esporte primitivo do negacionismo, retrocederam para o isolacionismo e, no fim, renunciaram a disputar influência com a China na OMS. Trump tenta, pateticamente, livrar-se da responsabilidade pela negligência, atribuindo a pilha de 65 mil cadáveres ao “inimigo estrangeiro” (o “vírus chinês”) e disseminando teorias conspiratórias (o “vírus de laboratório”), enquanto faz da emergência sanitária um pretexto para radicalizar a xenofobia.
Do outro lado do Atlântico, a União Europeia fechou descoordenadamente suas fronteiras internas e reativa a tensão entre Alemanha e o trio França/Itália/Espanha em torno das estratégias de resgate da economia.
“Para a China, tudo serve a uma utilidade política; um número nada significa para eles”, explica Ai Weiwei, o célebre artista dissidente chinês, referindo-se à macabra piada estatística. A China da página A5 soterra a China da inscrição na neve fofa. Ao mentiroso, as batatas.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 2/5/2020