*Por Luis Stuhlberger e Daniel Leichsenring
“Entre a desonra e a guerra, escolha a desonra, e terá a guerra.”
A frase, que Churchill cunhou para comentar o Acordo de Munique, poderia ser empregada agora para descrever a disputa entre as alas política e econômica do governo Bolsonaro.
Leia também
Você sabe o que é populismo?
Economista e ex-diretora do Programa de Desestatização do Ministério da Economia fala sobre a importância de controlar os gastos públicos
O Ministro da Economia subscreveu o acordo político de acabar com o Teto de Gastos, o que levou a uma debandada de técnicos sérios e comprometidos com o equilíbrio fiscal, desejosos de preservar sua honra.
Já o ministro escolheu a desonra, e ainda enfrentará a guerra contra a ala política, ela mesma responsável por negociar a PEC do Fim do Teto (isto é, dos Precatórios) no Congresso, que pressionará por mais auxílios, mais emendas parlamentares, mais desoneração, mais fundo eleitoral… sempre adicionando um novo e ‘inadiável’ vagão à caravana da gastança desenfreada.
Instado a se justificar, o Ministro contrapôs o Teto à Política Social e sugeriu que o primeiro é a antítese da segunda — uma tese para lá de falaciosa e que atenta contra o bom senso.
Cumpre-nos o dever de resgatar um pouco o histórico (e a racionalidade), e enumerar as consequências nefastas da desconstrução do Teto proposta pelo Ministério da Economia.
Como se sabe, o Teto foi uma das maiores reformas econômicas dos últimos 20 anos, promulgado em 2016 pelo Governo Temer como uma resposta à catástrofe econômica e social que resultou da total irresponsabilidade fiscal (e corrupção) do governo petista, gestada nos anos Lula e levada ao extremo no governo Dilma.
Como se vê no gráfico abaixo, a recessão do governo Dilma foi simplesmente a pior de que se tem registro nos 120 anos de dados.
Nos dois anos que durou, a recessão fez a economia contrair 6,7%, praticamente o dobro de qualquer outra recessão pela qual o País passara, só semelhante à crise de 1929. Do 4º trimestre de 2014 ao 4º trimestre de 2016, o PIB caiu 7,2%. Para comparar o tamanho dos desastres: na pandemia, tomando os anos de 2020 e 2021, o PIB terá crescimento próximo de zero.
No mercado de trabalho, saímos de uma taxa de desemprego de 6,7% em meados de 2014 para 13% em meados de 2017. Fazendo um exercício simples, concluímos que a recessão subtraiu R$ 780 bilhões (algo como R$ 135 bi/ano) da renda do trabalho recebida pela sociedade.
Esse exercício simples parece suficiente para comprovar que a irresponsabilidade fiscal teve, tem e sempre terá efeitos brutais sobre a renda das famílias, jogando-as na pobreza.
Foi neste contexto que surgiu o Teto de Gastos, para evitar que o populismo voltasse a impactar os brasileiros com suas consequências perversas. Medidas populistas são aquelas tomadas para dar algum benefício localizado, momentâneo — em geral eleitoral e claramente insustentável — que terá de ser corrigido adiante, usualmente da pior maneira possível, com efeito desproporcional sobre os mais pobres.
Entendemos quão dramática é a situação social do país.
A pandemia custou muito mais vidas do que seria razoável e jogou muita gente na miséria. Para completar o quadro, as medidas fiscais tomadas desde 2020 aumentaram a insegurança sobre a sustentabilidade da dívida, fazendo com que o câmbio tivesse uma desvalorização acentuada no período.
De janeiro de 2020 até hoje, o Real perdeu 38% do seu valor diante do Dólar, enquanto as moedas do México, África do Sul e Índia, por exemplo, perderam em média apenas 5,7%.
Com isso, tivemos uma aceleração brutal da inflação de alimentos. Sim, a inflação tem sido um fenômeno global, mas aqui a intensidade é muito agravada pelos nossos problemas. Se o País não tivesse gastado tanto antes, certamente teria mais espaço agora.
O auxílio emergencial foi pensado para compensar a queda de renda das famílias em consequência da pandemia e do fechamento de diversos setores da economia. Passamos períodos duríssimos, mas, felizmente, todas as métricas relacionadas à covid estão muito melhores agora, com o avanço da vacinação. Novos casos, hospitalizações e positividade dos testes estão em queda. Apesar do atraso inacreditável no contrato das vacinas (e das fake news patrocinadas pelo Planalto), o brasileiro abraçou a vacinação.
Restam poucas restrições sobre a atividade econômica no Brasil. Os indicadores de mobilidade mostram que o comportamento das pessoas voltou a algo próximo do pré-pandemia. Com isso, a justificativa para a renovação do auxílio emergencial ficou mais difícil, apesar do legado negativo da pandemia, porque não é objetivo do auxílio emergencial acabar com a pobreza estrutural, mas sim atuar de maneira temporária enquanto os efeitos da pandemia eram muito fortes. Não obstante, o momento é de extrema angústia social, e, portanto, concordamos com a necessidade de se estender uma assistência maior por mais tempo, dado que vários aspectos da vida seguem ainda distantes do normal.
Mas solapar o Teto de Gastos é a pior maneira de fazê-lo.
No final, o Teto não é um instrumento que se opõe ao gasto social. Pelo contrário. O Teto força o Congresso e o Executivo a avaliarem onde faz sentido gastar mais, garantindo que políticas populistas não venham a ser implementadas em larga escala, reduzindo o risco de catástrofes como a Depressão de 2014-2016.
Dito de outra maneira, essa história de “fiscal nota 10” contra “social nota 0” é falaciosa e, pior, apenas dá justificativa para qualquer populismo feito em nome do social, ainda que a conta acabe muito mais salgada do que o benefício, como de costume.
O benefício médio do Bolsa Família está próximo de R$ 190, e não vê reajuste desde junho de 2018. Do último reajuste do BF até o fim de 2021, o IPCA acumulado deve ficar pouco acima de 20%. A reposição da inflação deveria levar o benefício para perto de R$ 225.
Porém, a cesta básica teve aumento de 56% entre junho/18 e set/21, e provavelmente terminará o ano com um aumento próximo a 60%. A correção dos valores para acompanhar a cesta básica deveria levar o Bolsa Família a algo como R$ 290.
A solução correta para o problema estrutural da extrema pobreza teria sido focalizar os gastos públicos em favor do Bolsa Família, mas o governo abandonou qualquer proposta neste sentido. A triste realidade é que, do orçamento federal de R$ 1,646 trilhão para 2022, não se consegue remanejar R$ 50 bi para incrementar o gasto social.
Ao mesmo tempo, diversos segmentos da sociedade recebem R$ 370 bilhões ao ano de subsídios (gastos tributários). Há um orçamento de trilhão e um volume inacreditavelmente grande de subsídios e desonerações para grupos específicos, mas nenhuma vontade política de fazer reformas que permitiriam um gasto social muito mais robusto e sustentável.
A regra no Brasil é: grupos de interesse com mobilização política no Congresso conseguem obter para si uma soma vultosa de recursos — que é paga por todos (proporcionalmente mais pelos mais pobres).
Dentre esses grupos, um dos que mais extrai recursos é a classe política, que agora comanda um pedaço relevante do orçamento via emendas parlamentares, fundos partidário e eleitoral, e advoga por mais gastos sociais — válidos apenas para o ano eleitoral.
Para eles, é melhor mesmo que seja temporário, a ser renovado apenas em caso de reeleição. Para esses políticos, sempre de olho em extrair recursos e “narrativas” para reeleições sucessivas, não importa que a irresponsabilidade fiscal vá custar às famílias milhões de empregos e perda de renda.
Em seu cálculo político, talvez seja até melhor que a sociedade permaneça paupérrima, de forma que possam garantir suas reeleições com infinitos programas de auxílio.
Infelizmente, a memória brasileira é curtíssima.
A irresponsabilidade fiscal causou a maior recessão de que se tem registro no Brasil há apenas cinco anos, mas já foi devidamente esquecida (como também parecem ter sido esquecidos os maiores esquemas de corrupção que o País já testemunhou).
Acabar com o Teto agora é o primeiro passo para retornarmos a esse caminho. Diante dessa situação, pressionado pela “ala política”, o governo resolveu jogar na lata do lixo a Emenda do Teto.
A ala econômica, representada pelos técnicos demissionários, se retirou, mas a ala política ganhou um integrante na chefia do ministério da Economia, que agora justifica e aprova o fim do Teto. A consequência será desastrosa para o país: teremos inflação e taxas de juros mais altas, crescimento mais baixo, trajetória de dívida pior, e aumento de impostos adiante para pagar pelas escolhas de hoje.
Será um ciclo vicioso: mais inflação, menor crescimento e juros mais altos, levando à “necessidade” de mais gasto público…
O correto teria sido aprovar a extensão de um Auxílio Emergencial menor para 2022, na linha da menor necessidade dada pelo controle da pandemia. Em 2020, o Tesouro gastou R$ 293 bilhões com o Auxílio Emergencial, num total de medidas extra-teto de R$ 524 bi efetivamente desembolsados.
Em 2021, até hoje, foram pagos R$ 60,5 bilhões de AE e um total de R$ 107 bi relacionados à covid. Se gastássemos R$ 50 bi a mais em 2022, desde que temporário e sem mexer no arcabouço fiscal, seria muito menos danoso.
Não jogaríamos fora as instituições fiscais que nos custaram tanto para construir, manteríamos o Teto, e evitaríamos esse desequilíbrio geral a que assistimos agora.
Ainda dá tempo de tentar voltar atrás e evitar essa mudança do Teto. Não será fácil, mas talvez a pasta de dente volte para dentro do tubo.
*Luis Stuhlberger e Daniel Leichsenring são sócios da Verde Asset Management.
Fonte: “Brazil Journal”, 26/10/2021
Foto: Reprodução