No Brasil, para começar uma empresa, você precisa da ideia, de dinheiro e de um bom contador”, diz o empreendedor Parker Treacy, fundador da Cobli, uma startup de São Paulo, especializada no uso de big data para o setor automotivo. Natural de Massachusetts, nos Estados Unidos, Treacy chegou ao Brasil, em 2011, aos 27 anos, decidido a montar um negócio no país. “Eu sabia dos desafios”, diz ele. “Mas também enxergava muitas possibilidades.” Ainda assim, Treacy não deixou de se surpreender com a burocracia que encontrou pela frente, a complexidade do sistema tributário e o calhamaço de papéis que precisava preencher o tempo todo. “Era muito engraçado, porque, no início, eu ainda nem tinha equipe, o negócio mal estava em pé, mas estávamos lá na salinha, eu e meu contador com uma pilha de documentos”, diz Treacy. “Até hoje, brinco com meus amigos: você pode ser um ótimo engenheiro ou um experiente empreendedor, mas se não entender nada de contabilidade, muito boa sorte!”.
Os primeiros anos da Cobli foram difíceis – e foi necessário persistência para que Treacy não fizesse as malas e voltasse para casa. O cenário só começou a mudar no final do ano passado, quando a Cobli, além de fechar no azul – o faturamento foi de R$ 200 mil – conseguiu, enfim, encontrar seu caminho para expansão. Para coroar a boa fase, em abril, a empresa conseguiu desbancar 190 concorrentes e foi a vencedora de uma das categorias da New Venture Competition, uma competição promovida pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, para premiar negócios inovadores e promissores pelo mundo todo. O prêmio, de US$ 50 mil (cerca de R$ 175 mil), será agora usado para pôr em prática os planos de crescimento, que devem elevar o faturamento da empresa para mais até R$ 2 milhões no final deste ano.
Com uma equipe atual de 21 profissionais, somando um expertise de 12 mestrados e doutorados em ciências da computação, a Cobli – por meio de um dispositivo simples acoplado aos painéis dos carros – coleta e analisa informações com o objetivo de, entre outras coisas, traçar o tipo de comportamento dos motoristas e ajudar empresas a aprimorar seus serviços e resultados. Entre os clientes está a Liberty Seguros e mais uma centena de pequenas e médias gestoras de frotas. “Graças às nossas informações, algumas empresas conseguem ganhos de até 40% em suas operações”, diz Treacy.
Dependendo da maneira que a pessoa faz uma curva ou a quantidade e intensidade de vezes em que pisa no freio ou no acelerador, o sistema da Cobli pode, por exemplo, identificar o motorista ao volante no momento exato de uma ocorrência com 92% de precisão – é o mais alto índice já conquistado por uma empresa em todo o mundo. “Para nossos clientes, isso pode ser um dado precioso”, diz Treacy. “Permite que eles identifiquem com mais certeza o funcionário responsável por uma má entrega ou ainda deem descontos a segurados mais cuidadosos ao volante.”
Nesta entrevista, Parker Treacy detalha o trabalho feito por ele e sua equipe e fala sobre como forjar uma empresa vencedora, mesmo com todos os desafios para se empreender no Brasil.
Por que o serviço oferecido pela Cobli foi considerado tão inovador pelos jurados em Harvard?
Eles avaliam não apenas o nível de inovação daquilo que estamos fazendo, mas principalmente nosso modelo de negócios. A empresa precisa ter alta probabilidade de fazer dinheiro, de ter sucesso financeiramente. Acho que duas coisas foram importantes para a decisão: o tipo de análise que conseguimos fazer com uso de big data e também o setor para o qual direcionamos nossas soluções, o setor de logística. No geral, no mundo todo, esse segmento ainda tem muitos problemas e, portanto, muitas possibilidades para ganhos. Várias empresas estão atuando com big data, mas é difícil encontrar aquelas que estão resolvendo problemas reais. Geralmente, elas dizem: “Nós vamos avaliar todas as informações das redes sociais de seus clientes”. Mas são poucas as que apresentam soluções inteligentes sobre o que fazer com esse monte de informação. É difícil aqueles que conseguem encontrar quem consiga fazer algo de prático com a enorme quantidade de dados que hoje temos à disposição. Nós, acho, estamos conseguindo.
Como vocês fazem isso?
Temos um pequeno dispositivo, o OBD (on board diagnostic), que é acoplado sob o painel do carro e também um painel solar, colocado no para-brisa. Uma frota pequena de até 100 carros por exemplo gera até 220 milhões de pontos de dados por ano. Hoje, gerenciamos perto de 1000 carros de 20 empresas. Então, temos uma série de dados à disposição e uma equipe muito bem qualificada para analisar tudo isso. A gente cobra uma mensalidade que varia de R$ 80 a R$ 200 por mês e dentro desse preço já está incluído o aluguel do hardware. Ao final, entregamos às empresas relatórios de acordo com o que é importante para elas.
Quais são os ganhos para os clientes?
Entregamos informações que dão aos clientes subsídios para tomar decisões com alto nível de assertividade. No caso das seguradoras, eles podem identificar o cuidado com que o motorista dirige e dar descontos para fidelizar clientes. No caso dos gestores de frotas, é possível, com base nas nossas informações, identificar melhores rotas, economizar com combustível e assim, aumentar a produtividade. Mas o fundamental é o nível de precisão que conseguimos alcançar. Por exemplo, analisamos 147 variáveis e, dependendo do modo como a pessoa faz uma curva, mais para esquerda ou para direita, da quantidade de vezes que pisa no acelerador, conseguimos identificar com um nível de precisão de até 92% quem era o motorista do veículo no exato momento de uma ocorrência. Isso é importante para que os gestores saibam quem fez uma entrega que não deu certo ou quem é responsável por uma multa. Até pouco tempo, todo o controle era feito em papel. A precisão dá menos margem para discussões e mais garantia aos gestores.
Qual o significado desse prêmio para vocês?
Toda a equipe está muito satisfeita com o resultado. Minha mãe ficou tão feliz que, por dias, não parou de compartilhar a foto da nossa premiação no Facebook (risos). Agora,vamos usar o dinheiro para investir na nossa expansão. O mais importante é a sinalização de que estamos no caminho certo. E isso é muito bom.
Por algum momento você duvidou que a Cobli daria certo?
Quem empreende precisa ter em mente que vai se deparar com desafios absurdos. Aconteceu comigo também. Eu já tinha experiência como empreendedor nos Estados Unidos (Treacy é fundador da First Help Financial, que concede crédito para compra de automóveis – é de lá que veio o dinheiro inicial para o investimento na Cobli). Mas aqui tive de me deparar com questões estruturais muito mais pesadas, como a burocracia, a complexidade do sistema tributário. Mesmo superando tudo isso, passamos cinco anos muito difíceis. Começamos como uma empresa B2C, nosso foco era o consumidor final. A gente tinha um produto incrível, mas que pouca gente comprava. E demorou para perceber que a demanda ali seria pequena mesmo. Tentamos várias coisas, quebramos a cabeça, até encontrar nosso rumo.
Na prática, o que vocês fizeram para superar os desafios? Como foi a mudança?
Isso foi resultado de muita discussão interna. Entre toda a equipe e nós três, os sócios (além de Treacy, também têm participação na empresa os profissionais Rodrigo Mourad, responsável por produto, e Domingos Soares Neto, chefe de TI). Sentávamos aqui nessa salinha (a Cobli ocupa uma pequeno imóvel comercial em um prédio nos Jardins, em São Paulo) e ficávamos discutindo por horas. Começamos a pensar quais perfis de cliente teriam mais ganhos com um serviço como o nosso. Então percebemos que esse grupo estava entre os gestores de frotas, principalmente as empresas de pequeno e médio porte. Como tinha alguma experiência no setor automotivo, sabia que nesse tipo de negócio os controles ainda são muito frouxos. Às vezes, os donos das empresas são ex-motoristas, competentes em relação às práticas logísticas, mas sem muita experiência ou recursos para fazer a correta gestão de um negócio, por exemplo. Agora, a demanda está sendo muito maior do que imaginávamos. Chegamos a ter de desligar as vendas por algumas semanas para ajustar a implementação do serviço com todos os clientes que havíamos conquistado. Com essa mesma lógica, podemos ampliar nossa atuação para vários outros tipos de negócio que precisam gerir um grupo de veículos. Pode ser até uma fazenda.
O que você diria para quem está começando a empreender? Como suportar as dificuldades iniciais?
É preciso ter em mente também que empreender no Brasil é muito difícil. A burocracia para abrir e manter um negócio é terrível, mil vezes mais pesada que nos Estados Unidos. Além disso, conseguir recursos também é mais complicado. O crédito é mais escasso e muito pouco disponível para negócios de alto risco, que são todos os negócios em estágio inicial. Mas já foi pior. Percebo que algumas coisas melhoraram. Antes, ou você tinha uma família rica, ou você não tinha nada. Aos poucos, isso está mudando. Mas o maior obstáculo, na minha opinião, ainda é cultural. Talvez até em função dessas dificuldades práticas, há muito pouca tolerância ao erro. Falhar aqui dói demais. E falhar não é fracassar. Se você começa um negócio, com a opção de sair, é melhor nem entrar nele. Já deu errado. Em resumo, eu diria, você precisa de uma boa ideia, de dinheiro, de um bom plano de negócios e muita tolerância aos próprios erros. Ah, sim, um bom contador também é fundamental (risos).
Foi a primeira vez que uma empresa da América do Sul venceu o New Venture Competition. Você consegue imaginar outras empresas brasileiras ganhando esse prêmio mais para frente? O que ainda falta para elas chegarem lá?
O Domingos (sócio de Treacy e chefe de TI na Cobli) costuma dizer que a maior parte das startups no Brasil preferem copiar modelos que já deram certo lá fora em vez de investir em ideias novas. Isso é parte do problema. Nós vencemos um dos três prêmios – em uma categoria que exige que um dos integrantes da equipe tenha cursado Harvard (Treacy, que é formado em matemática pela Duke University, tem MBA em Harvard). Isso limita um pouco as coisas, mas ainda assim sei que tem muito brasileiro que estudou lá, que tem empresas hoje e que simplesmente não tenta participar. Talvez isso também tenha relação com o medo do fracasso, tão presente no Brasil. Os brasileiros, no geral, precisam ser mais tolerantes aos erros e às falhas. Precisam se arriscar mais. Apesar das dificuldades, as oportunidades aqui são imensas.
Fonte: “Época negócios”.
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