A cada ano, com os dados do Censo Escolar; a cada dois anos, com a Prova Brasil; e a cada três anos, com o Pisa, espalha-se democraticamente sobre o território nacional a lama do descaso e da ineficiência com as questões da educação. Há esforços de melhoria, há mobilização de parte da sociedade, mas os equívocos ainda superam de longe o entendimento dos problemas e o encaminhamento das soluções.
No nível individual, a cada ano, a repetência e evasão arrastam para a lama 6,3 milhões de indivíduos. A repetência penaliza 7,3% dos alunos nas séries iniciais, 11% nas séries finais e 10,5% no ensino médio, e é agravada pela evasão (2,1%, 5,4% e 11,2% respectivamente). Nos níveis em que ocorre no Brasil, a repetência é fruto de imperícia no ensino, mas quem paga o pato é o aluno. A evasão é a bomba de efeito retardado da repetência. Ambas comprometem as chances de emprego e a renda das pessoas para o resto de suas vidas.
Nos últimos anos, apesar dos dados, o país vem acreditando que as coisas estão melhorando. Mas a ficha caiu até para Andreas Schleicher, responsável pelo Pisa na OCDE e geralmente pródigo nos seus elogios aos países que participam do certame. Em recente entrevista concedida a uma rede de TV nacional, ele constatou o que alguns poucos pesquisadores brasileiros já vêm observando há tempos: desde 2009, o ritmo de melhoria da educação brasileira está se arrefecendo.
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O fato é que os reais aumentos no desempenho dos alunos nas séries iniciais não foram suficientes para assegurar melhorias nas séries finais. Ademais, a maior parte desse aumento se deve a melhorias nos fatores extraescolares – não a melhorias no que efetivamente acontece na sala de aula.
As dimensões da avalanche no nível individual também são monumentais no que se refere ao desempenho escolar. Apenas 16, 15 e 5% dos concluintes do 5º, 9º e 3º ano do ensino médio alcançam os níveis de 250, 300 e 350 pontos nos testes dessas séries. Esta nota corresponde aos níveis 5 e 6 na escala de proficiência em Matemática da Prova Brasil. Tem mais: em 107 municípios, mais de 90% dos alunos encontram-se abaixo da média nacional. Ou seja, poucos conseguem ficar acima da lama.
No nível das redes de ensino, ou seja, na esmagadora maioria dos Estados e municípios, os “brumadinhos educacionais” atendem pelo nome de ineficiência. Ela é gigantesca na gestão de recursos humanos, que consomem quase todo o orçamento do setor. Mas também é enorme na (des)organização da rede física. Por detrás dessas fraturas no dique, esconde-se uma outra ainda maior, que vai derramar lama por décadas, e que se chama imprevidência: a maioria dos atuais professores poderão se aposentar nos próximos dez anos com idade inferior a 55 anos, e o custo de suas aposentadorias e pensões em breve poderá ultrapassar o total das receitas de Estados e municípios, pois raramente esses desembolsos estão cobertos por fundos previdenciários.
A causa desses problemas está na adoção de políticas expansionistas irrefletidas e irresponsáveis, com ritmo, foco e regras equivocadas de carreira e remuneração – tudo em nome de uma genérica e irresponsável “valorização dos professores”. Sem uma profunda revisão nas políticas federais que forçam Estados e municípios a elevar seus gastos e nas demagógicas e insustentáveis políticas de pessoal dos próprios Estados e municípios, a avalanche será devastadora. Se as autoridades educacionais não estão atentas ao fato, parece que o pessoal responsável pela economia já começou a perceber.
No nível do país, o grande “brumadinho” está na estagnação da produtividade do trabalhador. Vivemos um paradoxo: aumenta o nível de escolaridade da população e da força de trabalho, mas a produtividade não avança. A produtividade de hoje é similar à observada em 1980. Em virtude desta estagnação, o trabalhador brasileiro tem ficado para trás na comparação internacional. Por exemplo, em 1980 a produtividade do trabalhador brasileiro era 25% da de um trabalhador norte-americano. Em 2010, já tinha sido reduzida a 16%, e essa tendência vem se acentuando.
Outro importante “brumadinho” de nível nacional associado à produtividade são os recorrentes e baixos resultados do Brasil no Pisa. Perdemos feio no confronto. Nossa média nos coloca entre os piores do mundo, e os avanços têm sido pífios nos primeiros 20 anos deste século. O mais grave está na outra ponta: nos países educacionalmente mais avançados e que também exibem maior produtividade, mais de 10% dos alunos atingiram ao menos o nível 5 (de um total de 6) na prova de Ciências em 2015 (Alemanha, 10,6; Canada, 12,4; Finlândia, 14,3; Japão, 15,3), ao passo que no Brasil apenas 0,7% dos alunos atingem esse nível. Estudos mostram a elevada correlação entre a robustez da elite intelectual de um país e diversos outros indicadores – especialmente em termos de produtividade.
Apesar dos elogios, a celebrada lei do Ensino Médio e a aplaudida regulamentação do ensino médio pelo Conselho Nacional de Educação não permitem a oferta de cursos técnicos como em outros países, nem a oferta de programas como o I.B. (international Baccaléaureat) – tudo em nome de uma inatingível “educação geral” e de um aparentemente intocável Enem.
Qual é a causa de tantos desastres? Por que tem sido tão difícil evitar que continuem acontecendo? As causas são conhecidas: um federalismo troncho que se esconde por detrás do ambíguo conceito de “responsabilidades compartilhadas”; políticas expansionistas que privilegiam a quantidade sem levar em conta a qualidade; interesses corporativos que assumiram o status de “conquistas”; e um grande consenso nacional formado ao redor de ideias equivocadas.
As saídas são conhecidas, mas não são fáceis. Menos Brasília e mais Brasil poderia abrir caminhos para estimular iniciativas inovadoras, desde que calcadas em novas estratégias e mecanismos de financiamento.
Crises podem constituir oportunidades excepcionais para mudanças e até mesmo para provocar destruições criativas. A área econômica do governo tem lançado ideias e balões de ensaio que poderiam oxigenar o setor. Políticas voltadas para o aumento da produtividade talvez sirvam para estancar a ocorrência de novos “brumadinhos”. É preciso agir. E rápido.
Fonte: “Valor Econômico”, 22/02/2019