Sempre fui canhoto e somente agora, com 82 anos, é que virei um canhestro ambidestro, usando a mão direita para sustentar o peso da minha velhice. Parafraseando Sartre, a aparência, conforme amavelmente me afirmam, é razoável; mas a essência (que é minha) vai se aguentando como pode.
O fato concreto é que me entendo como canhoto. Usar a mão e o pé esquerdos é imanente ao meu ser porque não me foi ensinado. Pelo contrário, o que tentaram fazer comigo foi corrigir-me, tratando meu canhotismo como um defeito. “Robertinho é canhoto…”, diziam resignados e para espanto meu os pais, avós e tios. Meus irmãos e amigos — porém, submetidos às mesmas opressões daquilo que chamamos de “processo de socialização” ou de “civilização”, que nos mandava calar a boca e a descobrir que “criança não tem vontade” — achavam bacana os meus surpreendentes chutes de esquerda.
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Na escola primária, fui assediado por colegas por ser um eterno novato chamado de “mata!” ou “da mata…” e por meus professores por escrever com a minha mão certa que, aprendi, era errada. Um dia, levei uma reguada na mão esquerda. Um acontecimento que o velho em mim enxerga como importante mas pequeno, diante das outras pauladas que ganhei na vida depois de “grande”.
Os eventos chocantes ocorridos numa escola — lugar destinado ao compreender, explicar, valorizar e afirmar a transmissão de ideais ou valores entre gerações, nisso que chamamos de “educação” — nos põem diante do absurdo. Eles nos confrontam com uma plena ausência de plausibilidade moral. Pois quando a agressividade e a violência assassina dos tiros substituem a paciência e a sabedoria das palavras, rompem-se as rotinas. O súbito sumiço do regular nos leva a uma busca desesperada de rumo dentro de nós mesmos.
Em outra parte do mundo, entretanto, num país que no nosso modo reacionário de pensar seria, por definição, melhor e “muito mais civilizado do que o Brasil”, ocorre algo do mesmo teor em mesquitas. Em templos islâmicos que, tal como na escola e na universidade, se busca minorar o sofrimento e se salientam a esperança e a fé num mundo melhor.
Esses rompimentos violentos de rotinas — fundados na ignorância, crueldade, radicalismo, negação absoluta da realidade, má-fé e agressão em todos lugares mas, acima de tudo, nos países permanentemente tidos como modelares e “civilizados” — deveriam nos levar a duvidar, ou ao menos questionar, se realmente existe alguma comunidade imune aos dilemas humanos; se alguma religião, regime econômico ou político resolveu de modo cabal os problemas decorrentes dos valores, hábitos e rotinas instituídos, os quais reprimem e entram em conflito entre si.
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Tudo indica que não há neste mundo humano, reiteradamente programado e reprogramado, nenhuma receita infalível de felicidade e plenitude além e aquém das que continuamos a seguir tenaz e honestamente. Em nome de Deus, ou debaixo da nobre crença de compreender, rejeitar, aceitar, corrigir e ter o equilíbrio e a coragem para começar de novo…
Se não conseguimos entender um canhoto, como engavetar nas nossas mentes duas guerras mundiais, Hiroshima, Nagasaki, inúmeros conflitos locais e uma permanente “guerra fria”?
Estimado leitor, pare para pensar o seguinte: essas imensas irracionalidades geopolíticas que levaram à morte planejada e legitimada de milhões de vidas transformam em brincadeira de criança o que, transtornados, assistimos com horror em Suzano e na Nova Zelândia.
Não é fácil descobrir como o incrível progresso da tecnologia digital pode, ironicamente, transformar-se num filme de terror. Isso para não pensarmos no aquecimento global, cujos efeitos mostram com uma clareza alarmante como amor e morte estão profundamente relacionados.
A mim me surpreendem as afirmações de que a violência não faz parte da tradição brasileira quando sabemos que o Brasil nasceu e cresceu debaixo da escravidão negra combinada com aristocracia branca. E sem até hoje dar valor à vida intelectual e aos locais onde tal empresa se realiza: as escolas, os museus e as universidades onde as gerações se encontrem para o confronto e para uma indispensável interdependência, esse conceito básico do processo de humanização.
Neste sentido, a ausência de motivos claros para a bestial agressividade ocorrida em Suzano e outros lugares nos obriga a saber mais sobre nos mesmos.
O mal-estar da civilização invocado por Freud em 1930 chega sem aviso prévio. Como uma bofetada ou uma irônica traição. Resta-nos afirmar que o entendimento deve preceder o julgamento e que a compreensão deve ter e ser a prioridade.
Fonte: “O Globo”, 20/03/2019