Ex-procuradora-geral da Guatemala, Claudia Paz y Paz liderou investigações que levaram um presidente a renunciar e condenaram um general por genocídio. Agora na OEA, ela está no Rio em adesão à “Instinto de Vida”, campanha de ONGs de sete países por redução de homicídios na América Latina que será lançada amanhã. Seu trabalho como chefe do MP lhe valeu indicação ao Nobel da Paz em 2013 e autoridade para falar sobre violência, impunidade e investigação de altas autoridades por corrupção.
Qual a gravidade do quadro de violência na América Latina?
A América Latina concentra apenas 8% da população, mas 38% dos homicídios no mundo. São 144 mil por ano, 60 mil no Brasil. Esta campanha junta os sete países de taxas mais altas (Brasil, Colômbia, Venezuela, México, Guatemala, El Salvador e Honduras) e tem a meta de reduzir em 50% estes números em dez anos. Os esforços mais efetivos são os que conjugam o público e a cidadania. Sobre os homicídios, algo fundamental é ter claro onde ocorrem os picos de violência, as “zonas vermelhas”. A partir daí se produz um diagnóstico, que caracteriza a violência em cada região. Houve progressos importantes em alguns países que viviam situação crítica, como a Guatemala, e como diretora da OEA minha função é levar exemplos de práticas exitosas a outros países latinos. Até porque as organizações criminosas são transnacionais, muitas vezes.
Como se reduz a taxa de homicídios de um país em mais de 30%, como fez a Guatemala?
O número de assassinatos caiu de 46 a cada 100 mil pessoas num ano (em 2009) para 29 a cada 100 mil (2016), uma queda sustentável. É impossível dissociar de um sistema de Justiça mais efetivo. A combinação da legislação, que permitiu bloqueio de bens e dinheiro dos chefes de organizações, com maior controle de crimes cometidos com comando de dentro dos presídios. A Justiça passou a não distinguir quem cometia o crime, muitas mortes eram cometidas por policiais. Ao fim, a população passa a confiar mais em denunciar.
A OEA tem dimensão da realidade mais complexa do Brasil, onde as políticas de segurança são feitas pelos estados, e não pelo governo federal?
Numa federação de estados, é mais complexo. Mas é o que se pode ver no nível transnacional. Por isso um dos esforços principais é integrar as nações, para que as fronteiras não sejam zonas de vantagens para organizações criminosas. Há áreas de fronteiras negligenciadas pelos países, e o tráfico de drogas e de armas é transnacional.
A impunidade estimula os crimes de morte e também os de colarinho branco, como os que a senhora investigou na Guatemala, levando o ex-presidente Otto Pérez Molina a renunciar. O Brasil vê toda sua elite política na mira de investigações, e há o temor de que a Justiça possa barrá-las. Como evitar?
Cada um tem seu papel. O Ministério Público investiga, o juiz julga, a defesa defende, com todos os meios legais a seu acesso. É importante que estes três papéis estejam bem separados. No contexto da Guatemala, eu percebia que havia decisões da Justiça que, em vez de jurídicas, eram políticas. Qual o melhor antídoto frente a isso? É que os casos apresentados (pelo MP) sejam totalmente sólidos, perfeitamente fundamentados, com provas indiscutíveis. Que a denúncia seja tão contundente, que não reste margem para não convencer os julgadores. A publicidade do processo é importante. Os cidadãos poderem acompanhar… É outro antídoto que reduz a possibilidade de decisões que não se atenham ao Direito.
No Brasil, fala-se que as investigações ainda podem atingir membros do Poder Judiciário. Por que normalmente é tão difícil investigar representantes do Judiciário?
Muitas vezes os fatores de impunidade são distintos, mas há um fator que costuma ser geral. As organizações criminosas, sejam de quais áreas forem, costumam lograr, penetrar nas instituições da Justiça, como ocorreu também na Guatemala. As grandes investigações em casos de corrupção, e de esclarecimento de homicídios, muitas vezes revelam a participação de policiais, promotores ou membros do Judiciário que foram corrompidos. Na Guatemala, foram condenados membros da polícia, da Justiça, e isso foi fundamental nos processos que o país viveu nos últimos anos.
A senhora foi indicada ao Nobel da Paz depois de liderar a acusação de genocídio contra o general Efraín Ríos Montt, que presidiu o país durante a Guerra Civil (1960-1996). Pouco depois da condenação, a sentença foi anulada. Fica uma frustração?
Era um caso muito sólido, que teve muita publicidade, as pessoas acompanhavam o julgamento durante dias. Houve uma sentença condenatória do tribunal contra um ex-chefe de estado pelo delito de genocídio, a morte de milhares de pessoas, a maioria de origem indígena. Depois, a Corte de Consticionalidad (equivalente ao STF) anulou o julgamento. Os três votos que anularam foram muito questionados. O mais importante é a reflexão. Valeu a pena. Para os sobreviventes, para os cidadãos. Foi um ícone do acesso à Justiça. As portas do tribunal se abriram para que se escutassem as vítimas das décadas de guerra civil.
Fonte: “O Globo”, 7 de maio de 2017.
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