Antes fosse a inflação nossa principal algoz, como em épocas anteriores. Afinal, essa sabemos combater
“Coronel Felisberto não era só rabugento. Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros.” Os coronéis da velha política brasileira não são só egoístas. Fossem só egoístas, vá; mas são também maus, deleitam-se com a dor e a humilhação dos outros. Não há conflito de interesse que não possam superar por meio do convencimento de que nesse mundo peculiar chamado Brasil não há divisórias a separar o que pode e o que não pode.
O Procópio de Machado de Assis até que tentou. Conflitado por receber dinheiro de personalidade demasiado tóxica, demitiu-se não uma, mas algumas vezes. Mas Felisberto roubou-lhe as forças. Por fim, lá ficou como o enfermeiro do coronel, sujeitando-se a todo tipo de humilhação. Até o dia em que, tomado de raiva e ressentimento, estrangulou o enfermo. Crime mais que perfeito, visto que Felisberto sofria de aneurisma. Procópio o enfermeiro recebeu em testamento toda a sua fortuna. E eis que o conflito evaporou-se. Procópio não matara o coronel com suas mãos, as moléstias o fizeram – “a verdade é que devia morrer”.
Os enfermeiros do governo Temer, todos os homens do presidente, tentam emular o comportamento de Procópio. São os enfermeiros da economia que por ela zelam, enquanto o país sofre abuso atrás de abuso de todos os que não sabem distinguir as linhas que demarcam conflitos de interesse de naturezas mais diversas.
O presidente que utiliza cadeia nacional para fazer defesa em causa própria com dinheiro do contribuinte – tal qual a antecessora –, que usa os advogados da União para montar sua defesa. Juízes de tribunais superiores que criam controvérsias e constrangem o Poder Judiciário ao fazer pronunciamentos duros a respeito da Operação Lava Jato. Relatores da reforma trabalhista investigados pelo STF por envolvimento em empresa terceirizada que coagia funcionários demitidos a renunciar às verbas rescisórias e a devolver a multa do FGTS. Partidos da base governista que não sabem o que fazer, já que alguns de seus mais proeminentes políticos podem estar prestes a ver o sol nascer quadrado.
Todos justificam suas posturas como Procópios do autoengano: recusam-se a enxergar em seus atos os conflitos. Usam como justificativa a proteção à enfermaria da economia. Já não se pode criticar alguns enfermeiros da equipe econômica sob o risco de tornar-se traidor da pátria.
A inflação brasileira está em 3,6%, a perspectiva é de que continue a cair. Com seu tecnicismo competente, o Banco Central conseguiu alcançar o Santo Graal do regime de metas, a ancoragem das expectativas. Ainda que a queda inflacionária seja também resultado das moléstias econômicas que assolam o país, não há dúvida de que preços que sobem mais lentamente seja algo bom.
Antes fosse a inflação nossa principal algoz, como em épocas anteriores. Afinal, essa sabemos combater. Infelizmente, o Banco Central não é nem Procópio nem Felisberto, nem protagonista nem coadjuvante. Muito menos a última trincheira contra a sanha populista que ainda assombra o Brasil, como parecem pensar alguns. Mantenhamos a mansidão com o Banco Central. Ele está apenas fazendo o seu trabalho, o que é muita coisa nesse Brasil atormentado.
Mas, e o Ministério da Fazenda? Qual a sua responsabilidade em relação à queda contínua da arrecadação? Qual a sua responsabilidade em não ter, quando podia tê-lo feito, exigido a reversão completa de todas as desonerações atabalhoadas de Dilma? Qual a sua responsabilidade em não ter conseguido frear os piores instintos perdulários do presidente cercado de dúvidas sobre sua idoneidade a quem servem? Até que ponto é possível autojustificar a permanência no governo manchado de Michel Temer em prol do país?
São apenas perguntas. Perguntas que deveriam incomodar mais do que incomodam, que deveriam forçar reflexão sobre o país que queremos ter. país com regras e governança, onde Procópio o enfermeiro não vira impunemente Procópio o assassino, ou o país do século 19 tão bem descrito por Machado de Assis? Por enquanto, tudo o que temos é a lápide brasileira: “Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados”.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 21/06/2017
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