A Constituição federal determinou que o regime de previdência privada deve ser organizado de “forma autônoma” ao sistema oficial do INSS (artigo 202, caput). O princípio da autonomia não se restringe à esfera jurídica previdenciária, mas tem como principal finalidade garantir a independência administrativa lato sensu dos fundos de pensão, procurando evitar toda e qualquer intromissão, pública ou privada, na gestão soberana das entidades de previdência complementar.
A preocupação do legislador constitucional foi tamanha que o artigo 202, parágrafo 2º, da Constituição fez novamente questão de destacar a autonomia do contrato de previdência privada; de forma categórica, foi estabelecido que as contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios “não integram o contrato de trabalho dos participantes”, ou seja, a relação de previdência complementar é distinta e separada da primitiva relação laboral.
Se isso já não bastasse, o artigo 202, parágrafo 3º, proibiu o aporte de qualquer recurso externo, salvo na qualidade de patrocinador, da União, dos Estados, Distrito Federal e municípios, suas autarquias, fundações empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades públicas. Como se vê, o sistema constitucional da previdência privada foi absolutamente meticuloso no regramento e proteção da autonomia dos fundos de pensão contra toda e qualquer influência política ou apolítica sobre o fiel cumprimento dos contratos previdenciários.
Infelizmente, apesar de toda a cautela constitucional, a prática tem mostrado que a autonomia dos fundos de pensão é, em certas circunstâncias, fragilizada ante dolosos interesses momentâneos. Ora, é sabido e ressabido que as entidades de previdência privada são autênticos players da economia de mercado, tendo participação direta e indireta em diversos tipos de investimentos: ações, imóveis, empréstimos, locações, títulos públicos e outras aplicações de renda fixa e variável. O objetivo da pluralidade de investimentos é um só: garantir o atingimento da meta atuarial e, assim, preservar a saúde financeira da entidade previdenciária com vista ao integral pagamento dos benefícios contratuais.
Os problemas começam quando se passa a misturar interesses institucionais com fins nebulosos. Por exemplo: diversos fundos de pensão possuem relevante participação em empresas de capital aberto. Tal situação pode possibilitar à entidade previdenciária o direito de ter uma cadeira no conselho de acionistas. Logo, poderá o fundo de pensão indicar um de seus dirigentes à função de conselheiro, que, uma vez exercida, legitimará o recebimento de uma dada remuneração por tal atividade. Até aí, tudo bem. Vamos, no entanto, incrementar o caldo.
Suponha-se que o governo, por interesses dele, passe a pressionar os fundos de pensão a adotarem uma política de investimentos em favor de determinadas empresas. Além da pressão, o governo elabora uma bela propaganda do negócio, apresentando-o como uma oportunidade imperdível. Nesse contexto, o fundo de pensão, por seus órgãos técnicos, passa a estudar a questão com o habitual cuidado, analisando seus riscos e possibilidades de ganhos. Mas o governo tem pressa e quer resolver a situação com a máxima brevidade. O tempo passa e a impaciência cresce.
Nesse ínterim, um técnico competente, no estrito cumprimento de suas funções, comunica ao diretor administrativo do fundo de pensão que tem sérias dúvidas quanto ao modelo do negócio. Ato contínuo, para a coleta de melhores dados e informações, esse diretor se nega a dar o seu aval para o andamento da negociação. Uma semana depois o cauteloso diretor é afastado de suas funções e em 24 horas a nova diretoria aprova o investimento, tal como sugerido pela clarividência governamental. Os anos correm e os maravilhosos rendimentos não passam de um sonho; num dia amargo, chega a hora de contabilizar os prejuízos, onerando os aposentados com abusivas contribuições extraordinárias.
[su_quote]Quanto menor o aceno político, mais reduzida será a oportunidade de gestão fraudulenta[/su_quote]
Logicamente, o exemplo acima é meramente hipotético e eventual semelhança com a realidade não passa de mera coincidência. Mas as coincidências podem existir, sendo aconselhável, então, a imediata instalação da comissão parlamentar de inquérito para examinar os negócios que estão sendo firmados pelos fundos de pensão brasileiros. Até porque a autonomia constitucional não pode ser eternamente falseada por interesses ocultos. Portanto, nada melhor do que jogar a luz do Sol sobre as sombras da noite.
Objetivamente, é chegado o momento de repensarmos certos dogmas do sistema de previdência privada brasileiro. É imperativo e inadiável estabelecermos regras de melhor governança corporativa que garantam a absoluta independência e a autonomia administrativa dos fundos de pensão. Há que se impor um rígido regime meritocrático, evitando-se a influência política sobre cargos de decisão. Em países sistematicamente corruptos, os esquemas criminosos concentram-se em atividades de grande movimento de capitais – petróleo, gás, transportes, bancos e também fundos de pensão. Logo, quanto menor o aceno político, mais reduzida será a oportunidade de gestão fraudulenta.
Por fim, o próprio papel da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) deve ser amplamente debatido, de forma a evitar o parcial aparelhamento do órgão regulador. Cumpre ressaltar que, além de fiscalizar as entidades previdenciárias, é função do Estado proteger os interesses dos participantes e assistidos dos planos de benefícios (artigo 3.º, VI, da Lei Complementar n.º 109/2001). Assim sendo, fiscalizações frágeis e punições fúteis são apenas jogos de cena para o livre triunfar da ilegalidade danosa.
No Brasil, infelizmente, quando a política entra, o espírito público sai. Neste vácuo moral, resta indagar: até quando os aposentados brasileiros pagarão a conta de desatinos que não são deles?
Fonte: O Estado de S. Paulo, 29/5/2015
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