“A liberdade de pensamento termina ali onde começa o dogma.” (Goerge Orwell)
Poucos representam maior ameaça às liberdades do que aqueles imbuídos de uma crença fanática em sua própria pureza e missão. Muito sangue inocente já foi derramado em nome dos ideais pregados por este tipo de gente, e devemos estar sempre alertas para seu perigo. É o que explica Marie-Laure Susini em Elogio da Corrupção, livro em que figuras como Robespierre e Paulo de Tarso vão parar no divã da autora, que é psicanalista.
Susini aceita o papel de advogada do diabo: “Afirmo que os incorruptíveis é que são perigosos. Os íntegros inquisidores e rigorosos purificadores, os virtuosos líderes de loucuras coletivas, os apóstolos da salubridade, os organizadores de campanhas de saneamento e massacres, os erradicadores do mal, os assassinos por dever”. A ideologia da pureza, enfim, deixou um rastro de destruição na História, e mais estrago foi causado por aqueles que lutavam em nome deste ideal do que por qualquer corrupto.
O livro começa com uma análise de 1984, principal obra de Goerge Orwell. Para ele, a ideologia, o ideal de regeneração é que corrompe o homem. Segundo a interpretação da autora, “arruinar a ignorância e a preguiça intelectual, as muralhas do pensamento convencional, as confortáveis e ilusórias certezas imaginárias foi o sentido do combate de Orwell ao longo da vida”. O novo homem, livre das imperfeições, sem as fraquezas humanas, eis o ideal que deve sempre ser combatido.
“Dizer não, recusar a imortalidade coletiva da virtude”, seria este o grande achado de Orwell. Entre a imortalidade do Partido ou sua mortalidade como humano imperfeito, o personagem principal de Orwell escolhe permanecer humano. Seu inquisidor, sob o uso da tortura, vai tentar extrair de seu corpo o “rastro de um gozo singular para aniquilá-lo”. Somente esta “confissão” pode apaziguar a fantasia de imortalidade do inquisidor. Todos os corruptos devem ser eliminados.
Susini vai ao cerne da questão quando diz: “Lutemos pela liberdade do segredo, do íntimo, para conservar em si uma parte estranha ao social”. Alerta fundamental na era do Big Brother, das redes sociais, da falta de privacidade e da ditadura do politicamente correto. A novilíngua orwelliana virou regra em nossos dias. A autora dá um excelente exemplo: “Afirmar que ‘a liberdade é segurança’ esvazia a palavra liberdade do próprio objeto do desejo de ser livre, da paixão da liberdade pela qual os homens se erguem e lutam, ao preço da vida. A liberdade é exatamente o contrário da segurança. Escolher morrer livre teve um sentido”.
O livro, que bate nos salvadores religiosos e ideológicos, não alivia também alguns cientistas modernos. Ela ataca essas “repugnantes ideologiazinhas vestidas de blusa branca que querem não só se apossar de nossa alma, mas nos chamar à ordem: o homem é neuronal, breve encontrarão nele o centro cerebral da moral”. Susini lembra que “não há ética sem uma reflexão íntima sobre a culpa subjetiva, sem uma interrogação íntima sobre o que são o bem e o mal”. A padronização dos seres humanos, vistos como cães de Pavlov, representa um enorme risco às liberdades individuais.
A corrupção defendida no livro é aquela consciência de que somos mortais, imperfeitos, castrados, fadados à destruição final por decomposição. O remédio encontrado contra esta inexorável realidade foi a criação da imortalidade humana. Foi forjada então a idéia de incorruptibilidade. Logo surgem os corruptores, aqueles que desvirtuam o homem de sua perfeição. As mulheres, responsáveis pelas maiores paixões dos homens, são candidatas evidentes ao papel de corruptoras. A tentadora Eva não foi quem convenceu Adão a experimentar o fruto proibido? A caça às bruxas da Inquisição foi um caso típico de fanáticos “puros” lutando para limpar a humanidade de sua corrupção.
A eternidade, a perfeição será sempre imaginária, enquanto o real será sempre corrupto, finito. O homem, sonhando com a imortalidade imaginária, irá considerar corrupto tudo aquilo que representa um obstáculo a este ideal. O sacrifício destes corruptos parecerá um preço pequeno a se pagar em nome de uma salvação coletiva eterna. Para criar o paraíso terrestre de justiça, o que são algumas cabeças enforcadas pelo Terror de Robespierre? A Revolução Francesa tinha um tom messiânico: ela iria moldar o novo homem, devolvê-los sua “virtude primária”, salvá-los da corrupção. E seu líder era ninguém menos que o Incorruptível. Quem vai ligar para algumas mortes quando a pureza de Robespierre está por trás das ordens? Não podem ser inocentes, pois o próprio líder é o povo, e o povo não pode estar errado; a vontade geral é a vontade de Deus!
Os capítulos finais do livro colocam num divã duas figuras importantes para os católicos: Thomas More e Paulo de Tarso. Sobre o primeiro, Susini resume: “A utopia, o projeto de uma sociedade da inocência, foi o sonho de um violento rebelde que queria ser santo”. Em Utopia, os homens estariam livres da falta, protegidos do ócio e da preguiça, da avareza e da cupidez, do orgulho e da vaidade, da depravação e da luxúria; enfim, livres dos vícios que corrompem as nações. Utopia estaria intacta, em sua “perfeição de origem”. Enquanto sonhava com este mundo perfeito, o chanceler More mandava condenar à fogueira seis adeptos de Lutero. Para extirpar o diabo do coração dos homens, é preciso agir!
Por fim, o grande nome da Igreja Católica é analisado sob a lupa da psicanálise, não deixando pedra sobre pedra. A transformação do judeu perseguidor de nazarenos em principal construtor da Igreja de Cristo é explicada com base nas teorias freudianas. A voz que ecoou na cabeça de Saulo a caminho de Damasco, “por que me persegues?”, era a voz de seu próprio interior, de seu inconsciente. Paulo é perseguidor, mas também perseguido. “Como justificar a fascinação secreta e o perturbador prazer que se tem de apedrejar um homem? A voz lhe revelou o mal”. E o mal estava nele.
Saulo virava Paulo, o escolhido, o eleito: “O homem antigo, prisioneiro de sua decadência, escravo de sua corrupção e – infelizmente! – mortal, cedia a uma criação nova, ao homem novo concebido e inventado por Paulo. Ao homem incorruptível! Nada menos!” E os novos perseguidos seriam, em primeiro lugar, os próprios cristãos, os corruptos, claro.
Como o universo dos incorruptíveis é imaginário e, portanto, nulo, conclui-se que o universo dos corruptos abrange a totalidade dos homens. Exceto, naturalmente, os Incorruptíveis, ou aqueles que nisso acreditam. Esses são as verdadeiras ameaças!
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