Na semana passada, foi ao ar entrevista concedida aqui em minha casa em Washington ao jornalista Pedro Bial. Confesso que havia ficado meio apreensiva ao saber que o programa seria montado com minha entrevista gravada e comentada por outro economista no estúdio. Acabou ficando bacana o programa, com visões bastante complementares sobre o momento brasileiro. Contudo, como ocorre em toda entrevista, há momentos que são cortados, pois não cabe tudo no espaço de tempo que se tem. Já não me lembro de todos os interstícios da conversa, mas um tem estado em minha cabeça.
Em determinada altura, veio a pergunta inevitável sobre a retórica de Bolsonaro, frases e falas que registrei em artigos anteriores para esta coluna, e sobre a capacidade que teria o cargo de presidente da República de tornar mais humilde o ocupante. Moro em Washington, logo pensei em Trump. Quando Trump se elegeu, para a surpresa, o desagrado e a exaltação de muitos, comum era ouvir o argumento de que a Presidência seria capaz de moldar quem quer que fosse, mesmo um bilionário desbocado do bairro de Queens, em Nova York. Não demorou muito para que esse argumento caísse por terra: se há algo que não aconteceu com Trump nos últimos quase dois anos, foi a modulação de seu discurso. Tanto no Twitter como nos comícios que jamais deixou de organizar e frequentar, Trump continuou a ser o líder de palavras inflamadas, de ataques pessoais, de desdém escancarado para com aqueles que dele discordam.
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Não gosto de comparações entre Bolsonaro e Trump, ou Bolsonaro e Duterte, ou Bolsonaro e Erdogan, ou Bolsonaro e qualquer outro líder global que possa ser encaixado no já enfadonho rótulo de populista de extrema-direita. Cada um desses personagens é fruto de seu tempo e da história de seu país de origem. As comparações mais confundem do que iluminam. Contudo, eu disse algo sobre Bolsonaro que guarda semelhanças com Trump, algo que se perdeu no corte da edição que inevitavelmente cria fendas na conversa.
Até muito recentemente, creio que era verdade que a Presidência da República trouxesse consigo a capacidade de moderar líderes especialmente ardentes e fervorosos. A pompa do cargo, sua importância, os pesos e contrapesos dos outros poderes da democracia, independentemente de seu grau de bananismo, tendiam, sim, a modular discursos e reduzir o som de temperamentos estridentes. No entanto, as redes sociais alteraram esse equilíbrio. Elas, hoje, fornecem ao presidente eleito canal direto com sua base de eleitores. Como Trump aqui nos Estados Unidos, Bolsonaro soube explorar esse canal com maestria. Como Trump aqui nos EUA, continua a explorá-lo.
Qualquer pessoa que já tenha usado o Twitter ou o Facebook bem sabe que o discurso político de rede — ou mesmo quase qualquer discurso de qualquer natureza na rede — está sujeito a inevitáveis embates. Afinal, nas redes afloram os instintos, o cérebro reptiliano que nos torna reativos, não reflexivos. Elas exemplificam bem o que Daniel Kahneman, pioneiro da economia comportamental e vencedor do Nobel de Economia de 2002, chamou de “pensamento rápido”, a impetuosidade de agir com o instinto de luta ou defesa que faz despontar sentimentos negativos como a raiva e a indignação. As redes, portanto, não conduzem à modulação do discurso, mas a sua exacerbação.
Quando alimentadas por espantalhos, como a suposta existência de “um sistema ideológico e burocrático criado conscientemente para frear qualquer mudança”, como disse recentemente Bolsonaro num tuíte, em alusão explícita ao deep state de Donald Trump, as redes agem como tubarões em frenesi. Portanto, qualquer líder que as utilize com frequência para falar diretamente com seus eleitores observará nas reações que suscita a validação de suas premissas, ainda que profundamente equivocadas ou falsas.
Torço para que o Brasil não se torne versão pindorâmica do que aconteceu aqui nos EUA. Aqui a histeria das redes transbordou para a imprensa, criando clivagens que simulam as câmaras de eco que predominam nos espaços virtuais. Quem lê o jornal A não lê o jornal B. Quem assiste ao canal X não assiste de modo algum ao canal Y. Nos intervalos entre A e B, X e Y, mora o pensamento reflexivo, o “pensamento lento” na denominação de Kahneman. São esses interstícios que nos fazem mais humanos e menos ariscos como animais.
Fonte: “Época”, 16/11/2018