“Se a liberdade significa qualquer coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir”.
– George Orwell
“É uma característica dos mais rigorosos censores dar credibilidade às opiniões que atacam.”
– Voltaire
É incrível como a intolerância e o desapreço pela liberdade de expressão aparecem de forma clara dos dois lados do espectro ideológico. Ontem, a participação da jornalista Miriam Leitão e de seu marido, o sociólogo Sérgio Abranches, na 13ª Feira do Livro de Jaraguá do Sul, em Santa Catarina, foi cancelada. Os dois foram vetados pela organização em resposta a uma campanha nas redes sociais. “Por seu viés ideológico e posicionamento, a população jaraguaense repudia sua presença, requerendo, assim que a mesma não se faça presente em evento tão importante em nossa cidade”, diz o manifesto que reuniu 3.050 assinaturas até a tarde de ontem.
No último fim de semana, dezenas de pessoas também tentaram impedir, aos gritos, queima de fogos de artifício e som de música alta, a palestra do jornalista Gleen Greenwald, na Flip de Paraty.
Exemplos como esses abundam: Há dois anos, um abaixo assinado de acadêmicos esquerdistas pediu que uma palestra de Bolsonaro fosse cancelada numa universidade dos EUA. Na mesma época, houve um abaixo assinado com mais de 100.000 assinaturas contra a vinda da filósofa Judith Butler ao Brasil. Quem não se lembra também do episódio da retirada de vários filmes, num festival de cinema no Recife, há alguns anos, em protesto contra a participação, no mesmo festival, da película ‘O Jardim das Aflições’, baseada no livro homônimo, de Olavo de Carvalho? E da recente reprovação do prefeito de Nova York à presença de Bolsonaro na cidade, para receber uma homenagem?
Embora esses protestos sejam perfeitamente lícitos e legítimos dentro do arcabouço moral da cidadania e da civilização (desde que realizados sem violência), demonstram profunda intolerância para com as ideias alheias, pelo menos para aqueles que têm algum apreço pela liberdade. Por isso, tornam-se ainda mais chocantes quando alguns auto-declarados liberais os aplaudem.
Como escrevi alhures, se há um princípio sobre o qual os liberais não devem transigir, é o princípio da liberdade de expressão – não liberdade para aqueles que concordam conosco, mas liberdade para o pensamento que desprezamos ou até odiamos. O que entendemos por tolerância é, mais do que tudo, o esforço positivo para admitir a existência de crenças e opiniões diferentes das nossas. Nas palavras de Viktor Frankl, ser tolerante não significa que eu compartilhe a crença de outro. Significa que eu reconheço o direito do outro de acreditar e obedecer a sua própria consciência.
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Assim como os fascistas politicamente corretos não podem nos impor o que e como dizer, tampouco a direita moralista pode pretender ditar o debate público e exigir a homogeneização de ideias e opiniões “aceitáveis”, compatíveis com suas idiossincrasias.
Os autênticos liberais deveriam apoiar vigorosamente o direito de cada homem à sua própria opinião, por mais diferente que essa opinião possa ser da sua, até porque, como ensinava Thomas Paine, aquele que nega ao outro este direito, torna-se escravo de sua própria opinião, porque reprime o confronto com manifestações contrárias.
O debate livre de ideias, dizia Mencken, “é uma das mais úteis invenções humanas. É a mãe e o pai de toda investigação livre e pensamento honesto. Testa idéias, detecta erros e promove um pensamento claro.” Sem liberdade de expressão, sem debate, as idéias não evoluem.
O liberalismo é fortemente identificado com a crença e a defesa da liberdade individual em várias esferas da vida. Geralmente, um liberal é alguém que tem a mente aberta, tolerante e respeitador de diferentes idéias, credos e valores. Tal abertura não significa necessariamente um acordo ou simpatia por uma ideia, fé ou valor particular, mas que os outros não devem ser cerceados ou discriminados por mantê-los.
Essa atitude liberal sobre as idéias, opiniões, credos e valores alheios foi bela e persuasivamente defendida, ainda no século XIX, por John Stuart Mill, em seu glorioso ensaio “On Liberty”. Mill lembrou a seus leitores que nenhum de nós pode reivindicar infalibilidade intelectual, e que é somente através do discurso e do debate que pode ser descoberto se a verdade de alguma matéria está de um lado ou de outro, ou em algum lugar no meio. Até porque, como demonstram vários fatos históricos, ideias, atitudes e crenças excêntricas ou socialmente inaceitáveis no passado, não raro tornaram-se aceitas posteriormente. Logo, o mesmo se aplica aos costumes, tradições, valores e ideias do presente, que podem se tornar o lugar comum amanhã.
Existe uma tendência quase universal, talvez uma tendência inata, segundo Karl Popper, de suspeitar da boa fé de alguém que detém opiniões que diferem de nossas próprias. Se deixarmos que essa tendência nos governe, isso colocará em perigo a própria liberdade e objetividade necessárias ao desenvolvimento científico.
Uma opinião, certa ou errada, portanto, não pode constituir uma ofensa, nem ser em si mesma uma obrigação moral. Uma opinião pode ser equivocada, pode envolver um absurdo ou uma contradição. Um argumento será bom ou ruim, lógico ou ilógico, suas premissas verdadeiras ou falsas, mas jamais será em si mesmo um crime. Por isso, o campo de investigação do conhecimento deve permanecer aberto e o direito ao debate livre deve ser considerado sagrado. Se o discurso e a manifestação intelectual não forem livres, a procura da verdade será muito mais difícil, senão impossível.