Como é que atuamos no mundo? Nesse mundo que não foi feito por nós e que vai continuar sem a nossa presença? A pergunta do nosso professor ressoava num ar denso, vazio de respostas, fazendo face apenas a um conjunto de caras sem expressão porque é o saber alguma coisa que nos torna vivos e expressivos.
O mestre, ele mesmo, do alto de sua sabedoria estudada, pois quem ensina prepara suas aulas e só os burros e os tomados pelo poder (uma forma inexcedível de estupidez) falam do que não sabem, respondeu: pelo conjunto de papéis sociais que a sociedade nos oferece e obriga a desempenhar.
Trata-se, continuou ele, do velho “axioma de Shakespeare”: o mundo é um palco e todos somos atores com uma hora de entrada e saída num drama desconhecido dentro do qual desempenhamos muitos papéis. No teatro, os atores sabem exatamente o que vai acontecer e o bom ator finge que não sabe. Na vida, não sabemos o que vai acontecer, mas fingimos que podemos aguentar o sofrimento que chega sem aviso.
Descobri, anos depois, que a fala do bardo de Stratford não era bem essa, mas o espírito da coisa estava na observação do mestre. Todos nós, em qualquer sociedade, somos sujeitos de papéis que pertencem a um sistema.
Tal como ocorre com a língua que falamos e com os códigos de etiqueta que seguimos. O individualismo que engendrou a tal “teoria da prática” passa a impressão que podemos mudar o mundo mas, no fundo, atuamos dirigidos por um sistema que nos obriga a pensar e fazer dentro de uma gramática e um vocabulário. Criamos mas somos criaturas.
Em 1912, George Bernard Shaw escreveu a peça “Pigmaleão”. O drama original se baseia nas complexas relações entre o escultor Pigmaleão e sua criação, a estátua de Galateia. Ovídio, o grande poeta latino, considerado o pai da poesia erótica, diz que Pigmaleão fez Galateia de marfim e, apaixonado pelo que tomava como a mulher ideal, apaixonouse. O amor a sua criatura levoulhe a implorar que Afrodite, a deusa do afeto, desse vida a Galateia, no que foi atendido. Mas logo que começou a respirar, ela reclamou da barba de Pigmaleão.
Ela a cortou e, no processo, feriu o rosto. As gotas de sangue que caíram no chão transformaram-se em rosas vermelhas que, desde então, são símbolos dos sacrifícios dos amores apaixonados.
Bernard Shaw transformou Pigmaleão num professor de fonética e, zombando da hipocrisia inglesa e da nossa modernidade que presta mais atenção às aparências, transformou Galateia em Eliza, uma florista suja, ignorante e sem modos, numa duquesa, usando o traço mais inglês da vida britânica: um sotaque apropriado que — eu próprio testemunhei isso — permite distinguir um cara de Cambridge de um outro, de Oxford. Mas diferentemente da narrativa original, e do filme “My Fair Lady”, o Higgins de Shaw não se apaixona por sua criatura, fazendo com que Eliza tenha um destino marginal e infeliz, com sua aparência de duquesa implantada (e irremediavelmente deslocada) numa vendedora de flores rude e ignorante.
No país de Janbom, as coisas são mais fáceis. Os poderosos podem tudo, confunde-se mandonismo hierárquico com coalizão e isso faz com que o criador acredite que ele possui a essência do papel que ocupa. O personalismo, que opera na raiz de todo autoritarismo, tem esse traço. Ele confunde o ator com o papel e imagina que os atores inventam os papéis quando eles apenas os ampliam. Ademais, quanto mais importante o papel, mais é requerido do esator.
Donde o famoso “o exemplo vem de cima” e o tenebroso dia seguinte, quando o sujeito é obrigado a passar o papel para outro ocupante, como manda a impessoalidade das normas democráticas.
Como alguns têm alertado, o inimigo nos processos eleitorais é a confusão entre as normas impessoais que devem nortear os que são os juízes da competição, os chamados “donos do poder”. Se eles não tiverem um mínimo de impessoalidade, a democracia torna-se impossível. Nos períodos eleitorais, ou prevalece a consciência das obrigações dos papéis, ou o presidente acaba correndo o risco de transformarse num Pigmaleão de segunda: num mero cabo eleitoral. E, como não se sabe o resultado da disputa, ele pode jogar no lixo uma presidência que muitos tomam como das mais importantes na história da República. Pagamos para ver onde está o bom senso que Montesquieu e Tocqueville remarcavam como essencial para as democracias.
Bom senso que nada mais é do que a consciência e o diálogo entre nós, atores, e os papéis que desempenhamos.
O futebol ensinou, mais do que ninguém, essa diferença entre torcer e “ser de um time” sem — entretanto — deixar de honrar as regras que, no jogo, governam e submetem todos os times e desejos. Armando Nogueira, a quem eu presto uma homenagem vinda do fundo do meu coração, entendeu esse lado do espetáculo futebolístico e esportivo e muito escreveu sobre o esporte como uma experiência estética. Eu estudei o mesmo assunto de um ponto de vista ético, ligando-o aos fundamentos da experiência liberal e democrática. Armando Nogueira escreveu um prefácio para o livro “A bola corre mais que os homens”, no qual eu reuni ensaios e crônicas sobre futebol, Olimpíadas e esportes em geral.
Testemunhei na minha vida pessoal a sua pungente generosidade e o seu amor por essa esfera do mundo social onde as regras e os papéis sociais têm prioridade. Como deve ser no mundo civilizado.
OLá,
sou estudante de jornalismo da Universidade Metodista de Piracicaba, e necessito de algum email de contato com Roberto DaMatta para tentar viabilizar uma possível entrevista com ele.
Agradeço a atenção.
Luan
eu preciso saber o papel do presidente no governo