O preço dos combustíveis atingiu um nível sem precedentes na história brasileira. De acordo com a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o litro da gasolina comum poderá chegar a R$ 8 ainda neste ano. Mas não é só isso. A alta também afeta o diesel (R$ 3,60) e o gás de cozinha (R$ 95), produtos essenciais para a população.
Com o objetivo de conter a escalada de preço, o senador Carlos Fávaro (PSD-MT) apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Combustíveis. O texto prevê a criação de um vale-diesel para caminhoneiros, a instauração de novas políticas de subsídio para as tarifas de ônibus urbanos e a ampliação do vale-gás. Essas manobras, com custo de quase R$ 18 bilhões, ficariam de fora das principais regras de sustentabilidade das contas públicas, assim como ocorreu com o pagamento do auxílio emergencial durante a pandemia.
Para esclarecer os motivos da alta no preço dos combustíveis e entender os possíveis efeitos das políticas públicas no setor, a Revista Oeste entrevistou Marina Helena Santos, CEO do Instituto Millenium e ex-diretora de Desestatização do Ministério da Economia (2019). Mestre em Economia pela Universidade de Brasília (UnB), Marina Helena avalia que a interferência estatal no preço dos combustíveis não trará benefícios para a população. “Quando o Estado resolve dar subsídios para alguém, automaticamente tira recursos de outras pessoas”, afirmou. “Precisamos cortar os impostos dos combustíveis, mas antes temos de cortar gastos.”
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Se o petróleo é nosso, como dizem os políticos, por que a gasolina é tão cara?
A gasolina é cara no mundo inteiro, porque é uma commodity, um bem negociado no mercado. Nos últimos cinco anos, o petróleo e seus derivados estão com o preço alto. Não é apenas uma questão do petróleo, mas também de medidas governamentais. Em razão dos estragos causados pela pandemia de coronavírus, os países ofereceram diversos incentivos fiscais e monetários. O objetivo era evitar a recessão econômica. Por consequência, esses incentivos acabaram afetando o preço de diversos ativos, inclusive das commodities. A inflação global explica parcialmente o preço da gasolina. Há ainda as questões internas, que agravam a situação. No Brasil, a carga tributária é alta — não afeta apenas o preço de combustíveis e energias, mas também de alimentos e remédios. Isso acontece porque, de maneira geral, o governo gasta muito dinheiro. Sempre foi assim. No momento, o país gasta 40% do Produto Interno Bruto (PIB). E esse dinheiro vem de algum lugar — mais precisamente, do nosso bolso. Em comparação com os países emergentes, o Brasil tem a maior carga tributária. Quem mais sofre com isso são os pobres, que ganham até dois salários mínimos.
Como funciona a composição do preço da gasolina no Brasil?
Cerca de 40% é imposto — 15% federal e 25% estadual. Há ainda 30% da Petrobras, 15% de etanol e 15% de distribuição e revenda. Toda a parte que não está ligada aos tributos é composta de custos e margem de lucro. Isso é importante ser mencionado, porque dizem que, se tirar a margem de lucro da Petrobras, nossos problemas serão resolvidos. Mas não é assim. Todas as vezes em que medidas semelhantes foram aplicadas no país, a empresa enfrentou situações complicadas. A retirada da margem de lucro, em vez de contribuir para a redução do preço dos combustíveis, resultou em uma alta sem precedentes. O lucro da Petrobras serve para a realização de investimentos, o que faz a produção aumentar. Recentemente, o atual presidente da empresa, Joaquim Silva e Luna, disse que os dividendos da estatal, somados aos royalties, cobrados em cada barril de petróleo extraído, ultrapassam R$ 200 bilhões. Isso retorna para a sociedade via impostos.
“Não existe dinheiro do governo, existe nosso dinheiro”
De que forma a senhora avalia a PEC dos Combustíveis?
É terrível. Trata-se de uma medida populista, que vai além do Executivo. Deputados, senadores, governadores e pré-candidatos à Presidência da República também estão opinando sobre a questão. Essa conversa em torno dos combustíveis dá margem para que propostas que não funcionam sejam discutidas. De novo: a carga tributária no Brasil é muito alta. Deveríamos trabalhar para reduzi-la? Sim, isso tornaria nossa economia mais competitiva. No entanto, o debate precisa tratar de uma ampla reforma tributária. Se o imposto mais alto é sobre consumo, vamos resolver esse problema. O que não pode ocorrer é elencar um produto como a gasolina. Quando há desoneração de combustíveis, quem está subsidiando? Quem financia o carrão, a lancha? No fim, os pobres pagam a conta. Precisamos cortar os impostos dos combustíveis, mas antes temos de cortar gastos. A dívida do Brasil ainda é imensa, acumulou-se ao longo dos anos. Precisamos pagá-la. Para evitar que essa dívida continue a onerar nossos filhos e netos, precisamos equilibrar as contas. Isso significa arrecadar mais e gastar menos.
Caso a proposta avance, haverá impacto no preço dos combustíveis?
Não existe dinheiro do governo, existe nosso dinheiro. Quando o Estado resolve dar subsídios para alguém, automaticamente tira recursos de outras pessoas. Mas há algo ainda mais perverso. Quando estamos em uma situação economicamente delicada, a chance de políticas de subsídio gerarem taxas de juros maiores e desvalorização do câmbio são enormes. Na prática, o cidadão pagará mais caro pela gasolina.
Os governadores querem criar um fundo para estabilizar o preço dos combustíveis. Como a senhora avalia esse projeto?
O preço de commodities como petróleo e gasolina é muito volátil. Então, há um debate sobre nosso modelo de tributação. Por exemplo: se o preço do petróleo dobrar, a arrecadação também vai dobrar. Tudo fica mais caro. Uma saída para esse modelo de tributação é criar um imposto fixo sobre o preço dos combustíveis, um valor específico. Nesse caso, não importaria se o preço da gasolina fosse R$ 7 ou R$ 5, a cobrança do imposto estadual seria a mesma. De toda forma, acredito que o preço é um ótimo sinalizador da oferta e da demanda. Se o preço de determinado produto sobe muito, buscam-se outras soluções. É preciso tomar cuidado com as políticas de incentivo, porque mascaram o preço dos produtos. Em diversos países, os governos adotaram essas medidas. Como resultado, estão colhendo inflação.
Historicamente, qual é o efeito das políticas de subsídio?
Não funcionaram em nenhum lugar do mundo. Cria-se uma distorção de preços, e o que volta para a população é algo muito pior. O preço dos combustíveis mostrou, em nível nacional e internacional, que os governos estão fornecendo estímulos fiscais e monetários demais. A taxa de juros brasileira, que chegou a 2%, agora ultrapassou os dois dígitos [12%]. A inflação está em 10%. No caso dos combustíveis, é possível que aconteça a mesma coisa. Os custos são sempre maiores que os potenciais benefícios.
“Em qual setor da economia as estatais produzem melhor que as empresas privadas? Nenhum”
Por que motivo a pauta da privatização da Petrobras não avança?
Há muitos interesses. Trabalhei como diretora de Desestatização no Ministério da Economia e não vejo, na administração pública, nada mais forte que o corporativismo. Há muito poder em uma estatal, e os políticos querem se apropriar da empresa. O Petrolão é um exemplo disso. Em todos os contratos havia um valor de propina a ser pago para alguns políticos. Pelo que estamos ouvindo dos pré-candidatos à Presidência, todos parecem ter modelos econômicos intervencionistas. Fala-se em reestatização da petrolífera, de reduzir o preço dos combustíveis.
O que mudaria em eventual privatização da Petrobras?
Quando os interesses difusos são eliminados, as empresas tendem a se tornar mais eficientes. Com isso, conseguem cobrar preços menores por produtos de alta qualidade. Há mais geração de receitas, o que significa mais impostos a serem pagos. Mas apenas a privatização da Petrobras não é suficiente; a competição no setor petrolífero também é importante. Ainda há outra questão: precisamos separar o petróleo da Petrobras. O petróleo é sim um ativo dos brasileiros. Podem-se fazer concessões e cobrar royalties. Outra coisa, porém, é a estatal responsável pela realização desses serviços. Se uma empresa privada fosse encarregada de cumprir essas tarefas, não seria algo melhor? Haveria mais produtividade e maior geração de riquezas. Os Estados Unidos são um exemplo disso [ExxonMobil e Chevron, dois gigantes do setor petrolífero norte-americano, registraram lucro recorde no fim do ano passado]. Em qual setor da economia as estatais produzem melhor que as empresas privadas? Nenhum.
Recentemente, o ex-presidente Lula disse que, em eventual novo governo petista, a política de preços da Petrobras não será atrelada ao dólar. O que isso significa?
Vimos isso acontecer no governo da ex-presidente Dilma Rousseff. O preço dos combustíveis foi artificialmente mantido no mesmo patamar. E o que aconteceu com a Petrobras? Começou a ter prejuízos e dívidas astronômicas. Os investidores perderam a confiança no governo brasileiro, porque a dívida da Petrobras parecia impagável. Essa dívida contaminou as taxas de juros e o custo de crédito das empresas. Também promoveu uma desvalorização cambial. O país foi para as cucuias. Quando Lula faz declarações desse tipo, quer dizer que adotará as mesmas políticas que não deram certo na época de Dilma Rousseff.
Qual sua expectativa sobre a agenda de privatizações (em todos os setores) para os próximos anos?
É uma agenda complexa, difícil de avançar. Mas isso não significa que temos de evitar a discussão sobre o tema. Devemos sempre falar de privatização, para que as empresas — mesmo as estatais — sejam administradas com cuidado, sem ser instrumentalizadas. E ainda não falamos dos bancos, que também são importantes. Muitas instituições financeiras estatais continuam fornecendo créditos subsidiados pela população. Parte desses recursos vai para as grandes empresas. O Brasil continua a eleger os chamados campeões nacionais. Os efeitos perversos da má administração pública, que desorganizaram o mercado de energia elétrica [Eletrobras] e bagunçaram as contas do governo [Petrobras e BNDES], têm potencial de causar estrago. O ideal seria privatizar todas as empresas, mas é difícil. Os Correios são um exemplo disso. Os serviços são caros, as entregas demoram, os produtos chegam quebrados. A população resolveu apoiar a privatização da empresa. A pauta passou pela Câmara, mas segue travada no Senado. Para que a situação mude, é necessário eleger uma nova classe política, o que inclui Executivo, Legislativo e Judiciário.
Fonte: “Revista Oeste”, 11/02/2022
Foto: Reprodução