Quando se discute porque o Brasil é diferente da Argentina do ponto de vista institucional, o ponto nevrálgico dessa crença é a importância que a sociedade atribui à estabilidade de preços. É uma importante conquista da sociedade, depois de décadas de sofrimento, e por isso, a ameaça de aceleração inflacionária geraria reação da sociedade.
Pois bem. Talvez estejamos diante de um teste para nossas instituições.
Difícil traçar diagnósticos acurados sobre o atual retrato da inflação, separando o que é transitório do que é mais durador. Há o efeito da correção de tarifas públicas e da depreciação cambial, sendo que ambos têm potencial de contaminação direta ou indireta sobre preços livres, apesar da recessão. Alguma contaminação é inevitável. Por exemplo, o condomínio que é elevado por conta do ajuste de tarifa de energia ou o alimento que fica mais caro por conta do câmbio. A questão é sua magnitude e seu alcance sobre os vários preços de bens e serviços. Se a âncora monetária da economia estiver sólida, os repasses diretos e indiretos do câmbio a preços finais e o efeito secundário do ajuste de tarifas são mais modestos e restritos. Assim, o efeito dos choques seria transitório e a inflação voltaria a cair. Caso contrário, os choques são dificilmente superados e a dinâmica inflacionária não recua. Os choques ganham caráter mais durador.
Até meados deste ano, o quadro parecia mais controlado, o que se refletia nas quedas de expectativas inflacionárias a partir de 2016, apesar da piora sistemática para 2015. Havia confiança que a arrumação da macroeconomia promovida pelo time econômico lograria reancorar a inflação, ainda que não perfeitamente em 2016 (o valor mínimo atingido pelas expectativas foi de 5,4% em julho, segundo o boletim Focus do BC). As expectativas para 2017 chegaram a 4,55% em agosto.
No entanto, o quadro inverteu desde então e as expectativas vêm subindo semana após semana. No último retrato, os analistas esperavam 6,5% para o IPCA de 2016, com tendência de alta, e convergência para 4,5% apenas em 2019.
Algo aconteceu em meados do ano. Certamente os equívocos do lado fiscal que elevam o risco de solvência são o principal fator, com todas suas repercussões sobre a taxa de câmbio. Em paralelo e por isso mesmo, a percepção crescente de baixíssima eficácia da política monetária, estando ou não o país em situação clássica de dominância fiscal, que, grosso modo, caracteriza um país que depende do financiamento inflacionário para cobrir o desequilíbrio fiscal.
Não apenas as expectativas inflacionárias, mas também os dados recentes de inflação reforçam a avaliação de piora da dinâmica inflacionária. Há sinais de aumento do repasse cambial à inflação e da chamada inércia ou memória inflacionária, quando se observa os coeficientes dos modelos econométricos para previsão da inflação. São sinais incipientes, mas preocupantes. Se assim seguirem, a inflação seguirá elevada e talvez em alta, dependendo do grau de deterioração da âncora monetária.
A piora da dinâmica inflacionária, com maior inércia e repasse do câmbio, ocorre também na inflação no atacado, que está na casa de 10% aa, segundo a FGV, mesmo excluindo combustíveis e alimentos. O movimento de aceleração da inflação no atacado tem sido generalizado. Inflação de bens finais e intermediários roda em torno de 10%. O Índice de Preços ao Produtor (PPI) do IBGE está na mesma toada, atingindo 9,4% em setembro.
[su_quote]Podemos estar entrando em outro regime econômico, com perda de ancoragem de preços, como consequência de erros na condução da política econômica[/su_quote]
Os dados sugerem que as empresas não estão conseguindo mais absorver quedas de margens, e procuram fazer algum repasse de custos aos preços. O receio de perda de market share, por conta da recessão, pode estar sendo superado pela necessidade de defender margens em um contexto de piora da ancoragem. As pessoas enxergam ajustes de todos os lados e resolvem fazer o mesmo.
Na mesma linha, ajustes salariais ganharam fôlego, apesar do desemprego em alta. A PNAD-contínua aponta aumento de 10,6% nos salários nominais em agosto. Será que empregadores aceitam ajustes maiores com a esperança de repassar o custo salarial aos preços?
Enfim, manifestações aqui e ali da deterioração da ancoragem de preços, com inflação de dois dígitos. Isso significa que a queda esperada da inflação em 2016 não é algo líquido e certo, ainda que a pressão de preços administrados possa ser menor. O potencial para decepção é grande. Olhando mais adiante, há risco de nova aceleração em 2017.
Podemos estar entrando em outro regime econômico, com perda de ancoragem de preços, como consequência de erros na condução da política econômica, que minimizou o risco inflacionário nos últimos anos, e a perda da âncora fiscal, pelo desequilíbrio sistemático nas contas públicas e o risco de solvência.
É importante agir rápido. Expectativa de inflação na meta poderá se transformar em quimera.
Ainda que no meio político não haja grande clareza sobre o tamanho da crise fiscal, a ponto de acreditarem que a troca do ministro da Fazenda resolve em boa medida o problema, eles poderiam pelo menos olhar com mais cuidado a manifestação óbvia do descontrole fiscal: inflação em alta. A sociedade olha e sente.
Fonte: Broadcast, 13/11/2015
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