No ano passado, quando surgiram os primeiros indícios de que o ex-presidente Lula da Silva poderia ser investigado pela operação Lava Jato, publiquei uma nota no site “Qualidade da Democracia” e nos meus blogs pessoais, chamando a atenção para o fato de que a questão implicava um desafio para a democracia brasileira, menos porque as instituições de controle estivessem despreparadas para cumprir as suas funções no caso, e mais porque as reações de Lula indicavam que ele e seu partido não tinham incorporado o princípio do império da lei, segundo o qual, na democracia não existem atores ou pessoas que estejam acima da lei – aliás, um princípio baseada na ideia de igualdade entre os membros da comunidade política, igualdade de direitos e igualdade de deveres definidos na Constituição e nas leis feitas e escolhidas pelos próprios cidadãos, através de seus representantes. [A dúvida imediata que surge aqui diz respeito ao fato de que os representantes do PT na Assembleia Constituinte não quiserem assinar a carta que havia sido aprovada].
Pois bem, as recentes reações do próprio Lula, de seus assessores, de dirigentes do PT – como seu presidente, Rui Falcão -, e de militantes que se manifestaram em frente ao fórum onde supostamente Lula deveria prestar esclarecimentos mostram a atualidade da questão. Lula e seus companheiros reagem como se alguém como ele não pudesse ser investigado ou como se isso usurpasse, em algum sentido, a sua identidade como líder político. As pessoas comuns sabem, no entanto, que se alguém é investigado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público mas, eventualmente, não deve nada ou nada tem a temer, e não existindo provas de seu envolvimento em fatos que estão sendo examinados, que o resultado do processo acaba por ressalvar a imagem do investigado e pode até resgatar efeitos negativos do envolvimento da pessoa nas investigações.
A questão, contudo, envolve um agravante: a reação de Lula e do PT lembra o que na tradição política brasileira sempre foi a atitude das oligarquias políticas, como lembrado pela conhecida frase de Getulio Vargas: ´Para os amigos tudo, para os inimigos a lei´. A ideia é que alguém que ocupou as funções de poder que Lula ocupou – e que deu a contribuição que se reconhece que deu ao país – não pudesse ser interpelado pela polícia judiciária ou pelo Ministério Público. Isso implica claramente a noção segundo a qual certas pessoas ou atores políticos não se submetem ao império da lei. Alguns anos atrás, Lula tinha feito uma observação nesse sentido a respeito do ex-presidente José Sarney, quando esse estava sendo investigado no Senado por causa de supostos decretos secretos que ele teria emitido como presidente da instituição, contrariando leis em vigor. Segundo Lula, Sarney não deveria ser investigado por causa da suposta contribuição que ele teria dado ao país.
Não é difícil perceber o desafio que essa maneira de conceber as coisas envolve para a democracia brasileira. Ele consiste em saber como a sociedade e as instituições enfrentarão as resistências que, como se viu no caso das manifestações em frente ao fórum onde Lula deveria prestar esclarecimentos, podem provocar violência política. O desafio é o Brasil aceitar que na democracia ninguém tem status ou direitos especiais. Por essa razão, republico minha nota de junho do ano passado para mostrar como ela continua ser atual.
Fonte: “Qualidade da Democracia”, 22 de fevereiro de 2016.
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