A mística dos primeiros cem dias de governo cria pressão sobre todo governante. Desde o desempenho estelar de Franklin Delano Roosevelt entre março e junho de 1933 (leia mais a respeito em minha coluna na revista Época da semana passada), os eleitos têm por hábito estabelecer planos para o período, fazer promessas e tentar imprimir um estilo próprio logo no início da gestão.
Também é o período em que a sociedade e os agentes econômicos, num gesto de boa vontade, oferecem um voto de confiança ao recém-eleito. É o tempo necessário para conhecê-lo, avaliar a equipe escolhida para governar, a capacidade de implementar as políticas do programa de governo e atender as demandas da população.
Não seria diferente com Jair Bolsonaro. Mas, embora a turbulência política que tomou conta do país neste início de governo seja relevante, seria um erro grave avaliar sua Presidência apenas pelo desempenho nos cem primeiros dias. Bem mais relevantes serão os 1.360 que faltam para ele completar o mandato.
A questão a fazer neste momento, portanto, não é como ele se comportou ou o que fez no período. É tentar entender o que esses dias nos dizem sobre o futuro, tentar vislumbrar, nas atitudes, decisões e medidas adotadas, os resultados esperados para o todo o governo.
Como todo exercício de futurologia, trata-se obviamente de uma tentativa, sujeita a críticas e desavenças. As conclusões a seguir não têm pretensão à certeza. São apenas uma semente para concentrar a discussão no essencial, em vez de desviá-la para o irrelevante.
1.Bolsonaro e a política – O próprio presidente reconheceu em declaração recente não ter a menor aptidão para o cargo. A quantidade de gafes e desatinos cometidos neste início de governo permite ir além: não lhe falta apenas aptidão, mas preparo mesmo. Nas democracias, não é novidade que líderes cheguem despreparados à Presidência. A dúvida é, uma vez lá, quão rápido aprendem. A essência da atividade do presidente é a política. Cabe a ele estabelecer a estratégia no relacionamento com a sociedade e com os demais poderes, em especial o Legislativo. Se Bolsonaro responde ao primeiro desafio por meio das redes sociais – elas, afinal, o trouxeram ao poder –, isso não o eximirá de dar uma resposta ao segundo. Deixar o Congresso nacional ao léu é abrir espaço a um inconveniente parlamentarismo de ocasião. Tentar aparelhar o Supremo Tribunal Federal – como desejariam certos partidários aguerridos – seria uma ofensa à Constituição e à democracia. Para manter o poder e governar, não lhe restará outra opção, a não ser a óbvia: fazer política. É algo que ele já demonstrou não saber. As reuniões recentes com lideranças partidárias no Congresso demonstram que parece estar aprendendo. Quão mais rápido e eficaz for esse aprendizado, maior sua chance de sucesso.
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2.Bolsonaro e a economia – Embora a política seja a essência da atividade de qualquer governante, o êxito de um presidente não é determinado só por ela. Fatores decisivos podem escapar completamente a seu controle. O mais relevante, de longe, é a situação econômica. Criou-se uma espécie de mística em torno da reforma da Previdência, como se ela tivesse o condão de recolocar o Brasil no rumo do crescimento. Não é verdade. A Previdência é apenas a mais urgente das reformas necessárias ao Estado brasileiro. O programa liberal do ministro da Economia Paulo Guedes é ambicioso e, embora aponte na direção correta para o país, não resolverá os problemas imediatos dos 12 milhões de desempregados, as pressões cambiais e inflacionárias, a penúria na indústria, as carências na infra-estrutura ou na formação de mão-de-obra qualificada. Nada disso se resolve com a reforma da Previdência. É preciso tempo. Enquanto isso, tais deficiências tem determinado, ano após ano, um limite ao crescimento brasileiro. As previsões mais otimistas para 2019 estão pouco acima de 2%. É um começo muito ruim. Se Bolsonaro fizer um governo com crescimento médio inferior a 2,5%, fracassará. Independentemente do que venha a fazer nas demais áreas, o empobrecimento da população e a volta da miséria cobrarão seu preço nas urnas. Um primeiro teste serão as eleições municipais de 2020.
3.Bolsonaro e a cultura – O presidente deixou claro neste início de governo que, para ele, a prioridade são questões de comportamento e cultura, ligadas à visão ideológica da direita nacional-populista contemporânea. O brasileiro médio diverge dessa visão conservadora, como demonstram diversas pesquisas. A insistência nessa agenda e na lealdade aos grupos que a defendem provocou demissões de ministros, paralisou as políticas educacionais e tem contribuído, mais que qualquer outro fator, para acirrar a polarização na sociedade brasileira. Um governo voltado para as redes sociais e para a disseminação do ideário conservador bolsonarista trará sequelas profundas. A divisão da sociedade se tornará irreparável, para além deste governo. É um legado com que o Brasil terá de lidar pelos próximos anos, independentemente da política.
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4.Bolsonaro e o Brasil – Embora já tenha visitado Chile, Estados Unidos e Israel, até agora Bolsonaro não foi ao Nordeste, região que lhe oferece maior resistência. Sua popularidade está em queda, em especial nos setores da sociedade que o bolsonarismo capturou do lulismo nas eleições: jovens, de classe média baixa, com menor nível educacional. Também é essa a faixa social que mais sofre com as consequências renitentes da política econômica desastrosa do governo Dilma Rousseff. Bolsonaro soube atraí-la com o discurso antipetista na campanha eleitoral. Agora será preciso decifrar suas angústias e corresponder a seus anseios. Não é uma questão que se resolva com a guerra cultural a que ele se habituou, pois esta atinge apenas brasileiros da classe média para cima. O Brasil é um país grande, complexo, diverso e plural. Está representado à perfeição no Congresso nacional, que tantos amam odiar. Se Bolsonaro não entendê-lo, terá fracassado.
Fonte: “G1”, 10/04/2019