Dia 31 de outubro é a data limite para a saída do Reino Unido da União Europeia. Com ou sem acordo, depois de alongados todos os prazos possíveis, a hora esperada chegará. Para os ingleses, que passaram os últimos três anos na expectativa desse dia, indo e voltando quanto às inúmeras questões e dificuldades que a decisão acarreta, deve dar no mínimo alguma expectativa de alívio. Ainda que da maneira mais desastrada e total, sem acordo nenhum, o Brexit será concretizado. O país poderá enfim virar a página.
A campanha que resultou na escolha pelo Brexit foi marcada por mentiras e fake news. Superestimação dos valores que o Tesouro britânico deixaria de gastar caso parasse de contribuir com a UE, subestimação do impacto da perda do mercado europeu no PIB inglês, medos irracionais acerca de imigrantes roubando empregos dos nativos. Seja como for, a decisão foi tomada, e se fôssemos anular eleições toda vez que os eleitores votam baseados em mentiras, nenhuma eleição conseguiria se sustentar.
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Uma coisa pode ser concluída: o Brexit é o tipo de escolha que se presta muito mal a um referendo popular. Afinal, envolve conhecimento técnico sobre diversas variáveis e compromete o país com uma ação concreta sem descrever em detalhes como essa ação se dará. Será que todos os que votaram pelo Brexit iriam querê-lo mesmo se soubessem que não haveria acordo nenhum para manter alguma abertura comercial com a UE?
É tarde para esse tipo de elucubração, e pela manobra política de Boris Johnson, que decretou um recesso parlamentar de cinco semanas, sobrará pouquíssimo tempo para os parlamentares costurarem um acordo. O país se encaminha, assim, para um hard Brexit: o Reino Unido se tornará um país independente, negociando com a Europa segundo as regras da OMC, como qualquer outro país.
Houve muito populismo na escolha pelo Brexit. Existe uma minoria, contudo, que o defende por motivos diferentes e que fazem mais sentido. Se pensarmos num mundo globalizado, com tecnologia que elimina distâncias e com novos polos de poder emergindo no Oriente, a escolha por se prender à Europa, um potência do passado que não deve mais voltar ao protagonismo que já teve, pode significar a perda de parceiros mais vantajosos para as próximas décadas.
O Brexit carrega também paralelos com o passado do Reino Unido. Em 1533, o rei Henrique VIII separou a Inglaterra da instituição continental que buscava ser a unificadora das nações europeias: a Igreja Católica. Daí em diante, a Inglaterra perdeu suas últimas terras do outro lado do Canal da Mancha (Calais, no norte da França, foi perdida em 1558) e voltou seu olhar decididamente para o oceano, no movimento que em alguns séculos a alçaria ao maior império que o mundo já viu.
Esse império atingiu seu ápice territorial no início do século 20, mas desde então foi se esfacelando e o Reino Unido voltou-se decididamente para a Europa. O Brexit é a nova independência da ilha com relação ao velho continente. O custo econômico num primeiro momento é real e foi escondido da população por uma campanha populista e mentirosa. Mais difícil de calcular são os ganhos possíveis de novos acordos econômicos com EUA, com as ex-colônias inglesas (inclusive a Índia), a China e outros países. Se o Reino Unido resistir à tentação de se fechar para “preservar empregos” (uma receita garantida para o retrocesso econômico) e se abrir para o resto do mundo, estará lançando as bases de um império econômico promissor. Como quinta economia do mundo e assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, ela não parte de uma posição fraca para essa empreitada.
Entre os possíveis beneficiários da nova situação inglesa está, quem sabe, o Brasil. Perdemos as rodadas de abertura econômica do mundo nos anos 90 e 00. Agora a tendência mundial é para o fechamento. O Reino Unido será, provavelmente, uma feliz exceção a essa regra. Não podemos deixá-la passar.
Fonte: “Exame”, 30/9/2019