Reagir ao escândalo da Receita Federal é um crime contra o Brasil e a mulher brasileira. Quem disse isso, no dia 7 de setembro, foi o presidente da República. Com outras palavras, é claro. Para Lula, os protestos gerais contra a farra da violação em série de sigilos fiscais são uma tentativa de “atingir com mentiras e calúnias uma mulher da qualidade da Dilma”. O primeiro problema que aí se coloca é a dificuldade de saber qual é, exatamente, a qualidade da Dilma.
Boa parte do eleitorado parece não estar preocupada com isso. Então, tudo bem. Mas aí se coloca outra questão. Se a qualidade da candidata do PT só aparece na boca do presidente, se sua incrível gestão na Casa Civil só floresce na prosa de Lula – que já pressentira todo o seu talento na primeira vez que a viu pela frente –, se não há testemunhas idôneas de sua mitológica capacidade de liderar e articular, se a própria candidata é refratária ao debate e não materializa em público sua proverbial virtude, se quando o bicho pega é o padrinho quem cai dentro da arena para brigar, se a imponente entidade Dilma Rousseff se parece cada vez mais com um disco voador, que muitos dizem ter visto, mas cuja existência ninguém garante, o Brasil e a mulher brasileira estão diante do primeiro crime da história cuja vítima é abstrata. Não vai ser fácil investigar.
E a dificuldade cresce diante de um complicador: a vítima é abstrata e sua verdade é relativa. Passada a crise de identidade com a atriz Norma Benguell, Dilma continua com uma visão muito peculiar de si mesma. Tem dito por aí, para quem quiser ouvir, que em setembro de 2009, quando violaram o sigilo fiscal da filha de José Serra, ela ainda não era candidata à Presidência.
É uma revelação e tanto. O Brasil inteiro seria capaz de jurar que há pelo menos dois anos vê o nome dela nas pesquisas de intenção de voto para a sucessão de Lula. Engano. Nesse período, Dilma era uma ministra como outra qualquer. Poderia ter saído do governo com outro projeto, quem sabe preferisse abrir uma pousada no Irã. Portanto, todas as pegadas petistas encontradas na quebra do sigilo de Veronica e de políticos tucanos não podem ter nada a ver com sua candidatura, que acaba de nascer.
O chato de conversar com pessoas desse tipo é que você nunca sabe onde a verdade delas vai estar. Depende, por assim dizer, da direção do vento. Talvez por isso Dilma relute tanto ao debate público e viva dando safanões em seus assessores e intérpretes. Ninguém tem a mínima competência para entender sua bússola verbal. Candidatura muito recente dá esse tipo de problema.
Nada muito grave. Como se sabe, Lula tem o dom de deduzir o que sua candidata sente e pensa. E usou todo o seu senso de oportunidade para traduzir a alma de Dilma Rousseff aos brasileiros no dia 7 de setembro. De quebra, mostrou que o grito de Dom Pedro I às margens do Ipiranga está superado. Independência ou morte é coisa do passado.
A morte nunca sai de moda, mas a independência não é mais aquela. O Estado brasileiro, hoje, depende do PT. Os dois são quase a mesma pessoa, não só na Receita Federal. Tanto que Lula avisou o povo de que não faria o pronunciamento presidencial do Sete de Setembro, supostamente para não influir na eleição. Mas se vestiu de presidente, com figurino e cenário palacianos, e foi fazer seu pronunciamento “oficial” na propaganda eleitoral de Dilma. Ali ele pôde ficar mais à vontade em seu brado retumbante petista, com musiquinha triste ao fundo e tudo.
As últimas aparições de Dilma mostram uma pessoa exausta e amedrontada. É uma crueldade o que seus tutores estão fazendo com ela. Esse é o verdadeiro crime. E o 7 de setembro de 2010 ficará marcado como o dia da dependência – a dependência de uma mulher despreparada a um projeto político inconsequente, ou vice-versa.
Fonte: Revista “Época” – 13/09/10
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