Em meio às incertezas da crise econômica mundial, à instabilidade política no Oriente Médio, aos assaltos a embarcações de piratas na Somália, às reviravoltas da política externa do governo Obama, à farra das passagens aéreas no Congresso, surgiu de repente no panorama um fato inteiramente novo e ameaçador.
Jornais, rádios e televisões anunciaram a irrupção no México de um inesperado surto de gripe, causada por misterioso vírus.
Do surto de gripe à pandemia
As primeiras informações davam conta de largas dezenas de mortos, vítimas da gripe batizada de suína.
Com a rapidez de um rastilho, a notícia se espalhou, a par do que se dizia ser a igualmente rápida disseminação do vírus. Multiplicavam-se as imagens de mexicanos usando máscaras em casa, na rua, no trabalho. Anunciava-se a paralisação do país.
Em outros lugares do mundo começaram a pipocar as mesmas cenas de pessoas portando máscaras, anúncio de casos detectados da misteriosa gripe, confinamento em quarentena de supostos portadores da doença, grandes quantidades de vacinas e remédios sendo estocadas.
Alertas pelo mundo. Noticiários ameaçadores. Declarações alarmistas de autoridades sanitárias internacionais.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmava que esta gripe seria capaz de atingir dois bilhões de pessoas.
Em pouco o tempo o mundo não estava mais perante um surto de gripe, mas diante de uma pandemia.
O clímax estava, de certa forma, atingido. Criara-se a sensação de estarmos diante de um perigo iminente e incontornável.
Contradições dentro do perigo
Mas quem parasse um pouco para fazer uma análise mais acurada dos acontecimentos, logo notava certa ou até grande defasagem do quadro traçado com a realidade.
Entramos, então, no que se poderia chamar uma segunda fase, a das informações e notícias desencontradas e até contraditórias: os desmentidos e os desmentidos dos desmentidos.
A sensação agora não era apenas do perigo iminente, mas de um caos dentro do perigo.
Afinal, das mortes anunciadas no México, apenas algumas podiam ser atribuídas com certeza à chamada gripe suína.
Outras notícias desinflavam a gravidade da infecção viral e a comparavam à de uma gripe comum.
O número aterrador da OMS era apenas o potencial da doença e o vice-diretor da entidade admitia que, mesmo numa pandemia, a maioria dos infectados não deveria ter mais do que uma gripe suave.
Muitos dos casos detectados em diversos países… não eram afinal da doença!
Até o próprio nome da grave infecção foi questionado. Ela não deveria chamar-se gripe suína. Alguns propugnavam que se denominasse gripe americana e, em muitos noticiários, passaram a referir-se apenas à contaminação pelo vírus A(H1N1).
E, como não podia deixar de acontecer, começaram a proliferar os gracejos e as piadas.
O binômio susto X desprevenção
A sensação passou a ser de uma gangorra psicológica.
Ora a desprevenção total, o ignorar completamente qualquer perigo; ora as medidas severíssimas, como não estender a mão, não aproximar-se mais de dois metros de alguém, as máscaras por toda a parte, etc., o que levou mexicanos a dizer que se sentiam infectados, mesmo não o estando.
O psicólogo mexicano José Mercado apontou com precisão o que ocorria com seu país, no momento em que se anunciava a volta à normalidade: estamos “saindo de uma situação de pânico, mas ao mesmo tempo nos mantêm com a idéia de que o inimigo continua aqui, que ele vai nos matar e que para evitá-lo temos de nos isolar, o que fomenta de novo o pânico, a loucura. Isso, em termos psicológicos, é nefasto” (cfr. O Estado de S. Paulo, 8.maio.2009)
Esse lado nefasto talvez explique as reações extremadas de alguns que, numa espécie de atração pelo abismo, passaram a organizar por Internet as “festas da gripe suína”, com o objetivo de se infectarem. A finalidade seria a de desenvolverem anticorpos.
Pânico moral oficial
Ao comentar com pessoas conhecidas e amigas o conjunto desta situação, pareceu-me toda ela eivada de grande irracionalidade, pela desproporção do alarmismo, pela imprecisão das informações, pela contradição dos dados, etc.
Segundo as notícias de ontem, 29 países reportaram casos, totalizando 4.500 infectados e até ao momento foram reportadas apenas 53 mortes provocadas pela gripe.
Subestimar um perigo é, por certo, um erro. Mas inflá-lo, ou ainda exagerá-lo desmesuradamente e levá-lo ao paroxismo – que alguns qualificaram de pânico moral – pode ser um erro ainda maior.
E, fato estranho, um pânico moral, não originado no boato anônimo e descontrolado, mas promovido por fontes oficiais de quem é de se esperar atitudes responsáveis.
O triunfo dos porcos
Em minhas buscas na mídia, deparei-me com um artigo, de autoria de João Pereira Coutinho (Folha de S. Paulo, 5.maio.2009), que sintetiza bem a situação criada e que convida à reflexão.
O título, O triunfo dos porcos, é um hábil jogo de termos, em referência à gripe suína de um lado, e à fábula de George Orwell, em que narra uma revolução entre os animais de uma fazenda, e a forma pela qual o idealismo foi traído pelo poder, pela corrupção e pela mentira.
João Pereira Coutinho começa o artigo referindo-se a seu estado de espírito à medida que o ano avança e não existe nenhum apocalipse pronto para exterminar a raça humana:
” Os meses passavam: janeiro, fevereiro, março. E as autoridades mundiais não lançavam gritos lancinantes sobre uma doença, uma anomalia técnica, um vírus descontrolado e mortal. Nem sequer um espirro!
Sei do que falo. Vocês, leitores, também. Nos últimos dez, 15 anos, praticamente não tivemos sossego. (…)
Antes mesmo do século 21 começar, os perigos estavam nas vacas e na carne delas. A doença tinha nome divertido (“doença da vaca louca”) e conseqüências menos divertidas: uma doença neurológica degenerativa e incurável que prometia condenar meio milhão de seres humanos a uma morte precoce e terrível.
Lembro-me bem: imagens de vacas trémulas, a dançar o twist; a matança de milhares delas, com ou sem sintomas; e os criadores de gado arruinados. Muitos optaram pelo suicídio. Pobrezinhos. Ainda hoje está por provar que a encefalopatia espongiforme bovina seja a causa da doença de Creutzfeldt-Jacob nos seres humanos.
Veio o milênio. E, com o milênio, vieram novos perigos. Não de origem animal. Mas humana. Ou, se preferirem, tecnológica. Na virada de 1999 para 2000, um “bug” informático iria paralisar as cidades, os transportes, o sistema bancário e financeiro. Aviões cairiam do céu. Milhões de doentes não resistiriam à paragem das máquinas. Os países mais desenvolvidos gastaram US$ 300 bilhões de dólares (estimativa conservadora) para evitarem o colapso. Quando a meia-noite soou, o mundo, inexplicavelmente, continuou. Suspirou-se de alívio. Ou de desilusão?
Os suspiros duraram pouco tempo. Se a humanidade resistira ao “bug” informático, não iria sobreviver à “gripe das aves”. A Organização Mundial de Saúde garantia que 7 milhões de pessoas estavam condenadas. As Nações Unidas, não contentes com 7 milhões, falavam já em 150 milhões. Especialistas vários preferiam dizer 350 milhões. Moral da história?
Morreram 200 pessoas, sobretudo na Ásia rural, onde a pobreza e a desnutrição não ajudam. Morreram incomparavelmente menos pessoas do que as vítimas normais que a gripe normal provoca todos os anos, em todos os países do mundo.
Eis a verdade: andamos há muito tempo a fantasiar a nossa própria destruição coletiva. São as vacas. As aves. O “bug” informático. A pneumonia atípica. A catástrofe ecológica e climatérica que nos espera.
Ou, para sermos mais atuais, uma gripe de origem suína e mexicana que, nas palavras de Margaret Chan, diretora-geral da Organização Mundial de Saúde, coloca toda a humanidade em risco. Que essa “gripe suína” esteja sobretudo confinada ao México, pouco importa. Que as vítimas do México sejam praticamente insignificantes quando comparadas com as vítimas regulares de gripe regular, também não. E que os infectados fora do México estejam a responder aos medicamentos disponíveis, muito menos. A realidade dos fatos não altera a nossa histeria.
E não altera porque a nossa histeria é profunda e incurável. Hoje, vivemos mais. Hoje, vivemos melhor. Mas apesar disso, ou sobretudo por causa disso, entramos em pânico sempre que a morte, ou mesmo a mera possibilidade da morte, ameaça o nosso único deus: o corpo, o nosso corpo, e a “Religião da Saúde” que substituiu todas as outras teologias tradicionais.
Tememos a nossa destruição física. Mas, como em qualquer temor, recriamos e até desejamos essa mesma destruição, como se isso redimisse a radical solidão dos homens de hoje. Tão modernos que somos. E tão entediados que nos sentimos.
Um conselho: nada nesta vida se faz sem perseverança. Quem sabe? Se desejarmos muito que algo aconteça, talvez um dia alguém lá cima se lembre de responder às nossas preces. “
Afirmei que este artigo convidava à reflexão. Antes de terminar quero deixar aqui duas perguntas.
Diz o autor que “andamos há muito tempo a fantasiar a nossa própria destruição coletiva”, para acrescentar depois que “a realidade dos fatos não altera a nossa histeria”.
1) somos nós mesmos que fantasiamos, ou nos induzem a fantasiar nossa destruição coletiva, como no caso presente?
2) a realidade dos fatos não altera a “nossa histeria”, ou não altera a histeria que nos querem impor?
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