Todo ritual nos remete a aspectos centrais de nossas vidas. No Natal, comemoramos explícita e paralelamente o nascimento do menino Deus também na figura de um velho bondoso que chega do céu e, como um rei deus, distribui um pouco de seus imensos bens para as crianças. Curioso que o nascimento de um Deus encarnado nascido na pobreza extrema de um estábulo seja também comemorado por uma figura de barba branca (símbolo da boa velhice), enroupado para um inverno de modo que, em países de clima tropical e familístico, como o nosso, a força da difusão cultural promova uma dupla transformação. Primeiro, as crianças podem demandar alguma coisa com suas listas de presentes; depois, porque temos que encenar o frio e a neve debaixo de um calor insuportável. Eis uma festividade em que celebra-se tanto o sagrado (o nascimento de Cristo Salvador) quanto o profano (o saco de bens que somos obrigados a consumir).
As demandas infantis são parecidas com o bom-senso que cobramos do governo. Ficam no mais puro desejo, pois mesmo tendo um enorme saco de brinquedos, sabemos que nem todo mundo é “filho de Papai Noel”, como já dizia aquela comovente marchinha de Assis Valente que desmascara, muito antes da antropologia do ritual, o “bom velhinho”. Mas, mesmo assim e como em toda festa, fingimos e nos acumpliciamos para que tudo dê certo e, com isso, fazemos – como ensina Lévi-Strauss – a vida vencer a morte. Pois, como diz o mestre, a inocente e ingênua crença das crianças em Papai Noel nos ajuda a crer na vida. Um velho deus rei muito rico, vindo do céu por meios mágicos, assume o palco ao lado de um menino Deus pobre que chega para nos salvar.
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Foi num dezembro de 1950, em Juiz de Fora. Morávamos num casarão velho na Avenida Rio Branco, no Alto dos Passos. As janelas eram do tipo guilhotina e todos recomendavam cuidado ao abri-las e fechá-las porque nós, os quatro irmãos mais velhos, podíamos – todo adulto-autoridade sempre exagera – perder o braço! Havia também um enorme porão que era a nossa Caverna de Ali Babá e uma mangueira na qual papai amarrou uma corda de modo a facilitar nossa transformação em Tarzans. Chegava o calor e, com ele, o Natal e o Papai Noel com sua roupa vermelha e seus símbolos de poder e riqueza. Impressiona o seu “saco de brinquedos” e, mais ainda, o trenó voador puxado, pelo que víamos, não sem ambiguidade, por veados graúdos.
Lá em casa corria o seguinte: se você fosse bem comportado, ganhava um presente solicitado no melhor estilo americano, num pedido escrito ao bom velhinho e verbalizado aos pais. Mas se você fosse “levado” e fizesse malfeitos, como os ministros inocentes e esquizofrênicos de dona Dilma, entre os quais, a vida privada nada tem a ver com a pública, você “ganhava pedra”! Isso mesmo, pedra! Essas pedras que, como soube depois, eu iria ganhar em profusão pela vida afora, mesmo tentando ser, eis o maior aprendizado do Natal, “bem comportado”.
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É obvio que mesmo entre crianças essas contabilidades entre o bem e o mal, que as religiões e o capitalismo aperfeiçoaram em bolhas parecidas com o saco de Noel, acabavam estourando. Afinal, você pode ser criança, mas não é simplório. Como éramos seis irmãos, os mais velhos logo descobriram que Papai Noel não existia; mas esse não foi o caso dos mais novos. Instalou-se entre nós uma microrreforma. Romero e eu, depois de vermos no guarda-roupa de papai os nossos brinquedos devidamente escondidos, tivemos a certeza (e a prova) de que Papai não existia. Mas Fernando, Ricardo, Renato e Ana Maria continuavam a crer em Papai Noel. Ora, a crença é uma ofensa para os descrentes, o oposto sendo uma parte mais do que verdadeira daquilo que faz parte do louco delírio humano. Naquele Natal, descobrimos que nem sempre os bons são recompensados do mesmo modo que testemunhei por toda a vida os maus, os hipócritas e os ladrões ficarem ricos…
Nós, os descrentes, abrimos um catecismo às avessas e tratamos de anunciar – meio como vingança, um tanto como um modo de sublimar nossa frustração – que Papai Noel não existia. Afinal, o velhinho que pilotava veados graúdos voadores era mais um truque dos adultos contra as crianças. Aquele truque tremendo que acontecia quando eles fechavam a porta do quarto em certas noites e do qual nós passamos a vida nos recuperando.
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Usamos um modo brutal de converter nossos irmãos, pois começamos a cantar o refrão: “Papai Noel, não existe! Papai Noel não existe!” Nós, os reformistas, dizíamos que não havia nada mais do que o sempre decepcionante, mas maravilhoso humano, pois descobrir o Nada é tão importe quanto acreditar no Tudo. Mas os crentes, pobrezinhos, reagiram chorando e, insultados, partiram para a briga.
O resultado foram algumas palmadas e, no dia seguinte, todos nós – os crentes e os descrentes – vivemos a imensa alegria de “abrir os presentes” debaixo do olhar de Papai, Mamãe, Titia e os empregados.
Quanto eu não daria para viver essa minha primeira grande frustração, novamente! Pois hoje sei que Papai Noel e muitas outras coisas não existem. Mas é por isso que tenho a obrigação de criar e sustentar momentos mágicos. A magia é a superação da realidade. Essa é a grande mensagem do Natal que eu, este marginal que acredita no sortilégio da descrença, desejo a todos vocês, amados leitores.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 21/12/2011
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