Ouvi da cozinha e pensei ter entendido errado. Revi no YouTube e, que solavanco, era aquilo mesmo. No “Roda Viva” desta semana, Ciro Gomes diz que o governo brasileiro não deve tomar lado na questão venezuelana e que a maior parte da oposição a Maduro é “fascista, neonazista, entreguista, vendilhã da pátria”.
O leitor talvez não acredite no que estou dizendo —tamanha maluquice é de fato inacreditável. Mas está lá no YouTube, na página oficial do Roda Vida.
Não sei quanto a vocês, mas nunca vi algum opositor venezuelano pregando superioridade étnica ou extinção de algum grupo social. Os manifestantes contra Maduro não parecem Carecas do ABC, mas garotos famintos e donas de casa cansadas de ficar na fila do mercado.
Henrique Capriles, principal opositor de Chávez, citava o governo Lula como exemplo do modelo econômico que gostaria de implantar. Isso quando podia concorrer nas eleições (ele e outro opositor, Leopoldo López, foram proibidos de ocupar cargos públicos).
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Na última eleição, líderes comunitários, que controlam a distribuição de alimentos subsidiados, compraram votos de moradores de favelas oferecendo luxos como remédios, ovos e sacos de frango congelado.
Só em quatro meses do ano passado, pelo menos 121 pessoas morreram em protestos contra o regime. É o equivalente a um quarto de todos os mortos pela ditadura brasileira em duas décadas.
Mas, para Ciro Gomes, tomar lado nessa questão é uma “posição criminosa”.
Segundo o Guardian, mais de 90% da população venezuelana não tem dinheiro para uma alimentação completa e 75% emagreceram no último ano (em média 9 quilos). Médicos do país mostram a jornalistas fotos de crianças desnutridas que lembram a crise de fome do regime socialista da Etiópia. Em nove de 21 hospitais públicos, quase 400 crianças morreram de desnutrição no ano passado.
Mas, para Ciro Gomes, a principal causa desse desabastecimento é o “isolamento especialmente imposto pelos norte-americanos”. E não o controle de preços, os saques a mercados, a expropriação de empresas, a hiperinflação, a crise fiscal ou a falta de dólares.
É a mesma desculpa que se usava para explicar a miséria de Cuba. Mesmo com as sanções econômicas, os Estados Unidos são o maior parceiro comercial da Venezuela. Respondiam no ano passado por 51% das exportações e 30% das importações.
Ciro diz ainda que o governo brasileiro não deve tomar partido para evitar ser “um mero gendarme dos interesses americanos que simplesmente querem praticar um golpe na Venezuela”.
Bem, vamos convir que nesse momento um golpe não seria uma notícia tão ruim aos venezuelanos. Mas é interessante expandir a outras situações esse anti-imperialismo gagá de Ciro Gomes.
Pelo mesmo raciocínio, também deveríamos ficar neutros em relação ao Holocausto, os crimes de Gaddafi, a crise de fome da China ou da Etiópia, os desmandos de Putin, pois a crítica beneficiaria os “interesses imperialistas americanos”.
É sério que Ciro Gomes acha que essa opinião lhe renderá votos? Ainda não consigo acreditar.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 30/05/2018