Mudanças e manutenção de regras votadas por deputados mais atendem a seus interesses que ao dos eleitores, avaliam cientistas políticos
A classe fez uma reforma para atender a seus interesses classistas. Essa é, segundo especialistas, a síntese da primeira fase das mudanças promovidas pelo Congresso nas atuais regras que regem o sistema político-partidário do Brasil. Como consequência, a primeira fase desse processo de alterações, concluído na semana passada na Câmara, teve como grande destaque o que deixou de ser feito, e não o que foi, de fato, aprovado, avaliam pesquisadores.
Na quarta-feira, os deputados encerraram, em primeiro turno, a tão apregoada reforma política, anseio antigo da sociedade civil, citada como panaceia para quase todos os males que assolam a República, incluindo os desvios de conduta, os escândalos de corrupção e a sopa de letrinhas das agremiações partidárias – a maioria delas de baixa representativa parlamentar. A reforma ainda precisa ser votada em segundo turno na Câmara para depois ser apreciada no Senado Federal.
“O que foi feito até agora trata-se de emendas pontuais e oportunísticas à legislação eleitoral e não de uma reforma. De maneira geral, as matérias aprovadas refletem uma tática defensiva de sobrevivência do Legislativo, diante do presidencialismo prepotente do PT e do ativismo judicial. A boa notícia é que piorou menos do que se temia”, afirma José Augusto Guilhon-Albuquerque, cientista político e professor titular da Universidade de São Paulo (USP).
Carlos Melo, cientista político e professor do Insper, faz coro com Guilhon-Albuquerque: “Foi uma reforma ‘meia-boca’, que não melhora a relação representante-representado, nem as relações entre o Executivo e o Legislativo. Apenas mantém o status quo dos parlamentares, sem modernizar sua atuação e representação. Advogou-se em causa própria.”
Dentre os principais pontos aprovados até agora estão o fim da reeleição para cargos do Executivo, a manutenção do financiamento privado de campanha apenas para partidos e o mandato de cinco anos para todos os cargos. Foi rejeitado o fim das coligações proporcionais, o fim do voto obrigatório e a criação do chamado distritão, sistema que substituiria o atual modelo proporcional de distribuição das vagas legislativas.
Distritão – Curiosamente, a derrota acachapante do distritão, sistema defendido pelo PMDB, e a manutenção do voto obrigatório estão entre os pontos positivos da reforma até agora, apontam os especialistas. “Confesso que gostei mais do que foi derrotado: o distritão e voto facultativo. Ambos teriam um efeito negativo imediato sobre o sistema representativo brasileiro”, avalia Jairo Nicolau, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “As melhores medidas foram as ‘não medidas’: rejeitar a excrescência do distritão e a coincidência de todas as eleições, de presidente da República a vereador. Isso não faz qualquer sentido”, completa Melo.
Na avaliação dos especialistas, por enfraquecer os partidos, o distritão acabaria enfraquecendo o sistema. Conforme essa proposta derrotada, passariam a ser eleitos os deputados mais votados em cada Estado, independentemente do desempenho de suas legendas.
O fim da reeleição, uma das poucas mudanças relevantes, é alvo de crítica praticamente unânime pelos analistas. “Foi um desserviço”, disse Guilhon-Albuquerque.
Argumento – A primeira fase da reforma é apontada como classista pelos especialistas, entre outros argumentos, porque não teve coragem de acabar com as coligações proporcionais nem instituir a cláusula de barreira (ou desempenho), capaz de brecar a proliferação de pequenas legendas. Com isso, o modelo atual continuará favorecendo as barganhas de tempo de TV em períodos eleitorais em troca de cargos em caso de sucesso nas urnas, por exemplo.
Pelas regras em vigor, os partidos podem se juntar livremente nas campanhas. “As coligações para eleições proporcionais foram mantidas, o que favorece a fragmentação partidária. Existem 28 partidos hoje na Câmara e esse número pode chegar a mais de 30. A coligação mascara a verdade ideológica dos partidos e encobre seus programas”, afirma Murillo de Aragão, cientista político e diretor da consultoria Arko Advice.
“O primeiro desafio (no restante do trâmite da reforma) é enfrentar os déficits do sistema de representação e, para isso, duas coisas são fundamentais: aproximar os representantes dos eleitores e abrir espaço para as mulheres e as minorias. O segundo é fortalecer o sistema partidário e, para isso, temos de estabelecer uma cláusula de representação efetiva como condição de as agremiações terem direito à representação no Congresso, acesso ao Fundo Partidário e ao tempo de televisão”, afirma José Álvaro Moisés, professor do Departamento de Ciência Política da USP.
Bruno Wanderley Reis, do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), faz um contraponto e enxerga algum avanço no que foi feito nesse quesito. “A exigência de que um partido tenha pelo menos um representante no Congresso para ter acesso ao Fundo Partidário e ao tempo de TV é positiva. Tendo a crer que, quanto mais partidos houver, melhor, de modo que não há motivos para se dificultar a criação de partidos em si mesma. Mas outra coisa é o acesso aos recursos públicos e ao tempo de TV. Para isso, é preciso mostrar representatividade política mínima”, afirma.
Reis também aborda outro ponto polêmico, o do financiamento das campanhas. Os deputados se recusaram a criar um teto para os gastos, o que poderia baratear o sistema. “É de se lastimar que a discussão sobre financiamento de campanhas tenha sido dominada pela questão de ‘quem doa pra quem’, e não o quanto e como doam, que seria mais importante.”
Fonte: O Estado de S. Paulo
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