O empreendedor, investidor e gestor de aceleradoras de negócios, Felipe Matos, inicia nova empreitada: bater à porta de políticos em Brasília para convencê-los de que o Brasil precisa ser mais ágil e menos burocrático para ser mais desenvolvido
A trajetória de Felipe Matos, de 32 anos, se confunde com a das startups brasileiras. Ele passou por quase todos os pontos da cadeia de inovação nas últimas duas décadas. Começou a programar aos 12, fundou a primeira empresa aos 16 e, aos 19, criou uma aceleradora de negócios (umas das primeiras do país) que colhia na universidade projetos para levá-los ao mercado. Em 2013, assumiu operação do Startup Brasil, programa do governo federal que deve investir até o fim deste ano 40 milhões de reais para impulsionar 150 startups em parceria com aceleradoras privadas. Fora do programa desde março, Matos retornou à sua própria aceleradora, a Startup Farm, onde foram semeadas empresas como o app Easy Taxi, um “case” nacional. Nas últimas semanas, Matos, um mineiro de fala mansa mas discurso incisivo, começou uma nova empreitada. Ele tem batido à porta de deputados e senadores em Brasília tentando convencê-los de que o Brasil precisa ser mais ágil e menos burocrático se quiser mesmo ser mais desenvolvido.
A peregrinação é parte das ações do Dínamo, um movimento que reúne Matos e outros 13 profissionais envolvidos no assunto, gente oriunda do Google, Microsoft e associações de empresas e investidores. Eles clamam por mudanças nos dispositivos legais que travam os negócios inovadores, mas não só: querem estimular o debate sobre educação – como preparar jovens para a economia do futuro? – e transformar em casamento o que ainda é um namoro de idas e vindas entre academia e mercado. “Muita gente ainda entende que o objetivo da universidade não é falar com o mercado, mas formar gente. Entendo esse ponto de vista, mas ele está deixando o Brasil para trás”, diz Matos. Ele fala também sobre o caso do aplicativo de transporte privado Uber, que vem provocando discussões mundo afora e que recentemente foi proibido pela Câmara Municipal de São Paulo, depois de forte oposição dos taxistas. “A sociedade sempre está mais avançada do que a regulação. Para inovar, você tem que mudar a lei”, diz Matos. Melhor seria, portanto, regular, e não proibir, o uso do app. Leia a entrevista:
Veja: À frente do Dínamo, você já foi a Brasília, falou com políticos, gestores. Como foi a recepção das suas propostas?
Felipe Matos: Fizemos duas viagens a Brasília, falamos com deputados, com senadores, com secretários de Estado, com vários ministérios, gente de diferentes partidos. A receptividade foi incrivelmente boa. Alguns deputados disseram: “Puxa, precisamos dessa agenda positiva.” Eles disseram que precisam de ajuda, de alguém da sociedade civil para levar esse assunto adiante e ajudar a colocá-lo em pauta. Dizem que, em meio a uma crise política, eles não conseguem olhar para assuntos como esse, que são importantes, mas não urgentes.
Veja: Um das bandeiras do Dínamo é promover modelos de educação capazes de preparar os jovens para atuar em mercados dinâmicos, desafiadores e inovadores. Como fazer isso?
Felipe: É uma questão densa. Eu costumo dividir a educação em três frentes: a formal, a informal, com os cursos livres, e a prática. Na educação formal, tanto no ensino técnico quanto na universidade, falta hoje uma visão empreendedora nos currículos brasileiros. Manter uma disciplina sobre o assunto, o que algumas universidades já fazem, não é suficiente pois as disciplinas ainda são muito teóricas. A proposta ainda é: leia um livro sobre o assunto e faça a prova. Isso não é empreender.
Um novo modelo de educação poderia desafiar os alunos a resolver problemas reais. Para isso, é preciso ir para a rua, pois as respostas estão no mercado, não na universidade. É preciso ouvir os clientes, e não o professor: o que o professor pode fazer é oferecer ferramentas para o entendimento do mercado. Esse é um desafio, porque nosso modelo de educação formal é regulado, pelo Ministério da Educação, no caso do Brasil. Quem tem rompido essa barreira são os programas de formação não formais, como Startup Weekend ou o treinamento da própria da Startup Farm, práticos e altamente educativos. Lá fora, quem faz isso muito bem é a Singularity University, financiada pelo Google e pela Nasa, que não é reconhecida formalmente como universidade porque optou por dar uma banana para o modelo formal. Lá, o desafio de grupos multidisciplinares é encarar problemas do mundo. São modelos que fazem mais sentido para preparar gente capaz de empreender, o que significa não apenas criar uma empresa, mas concretizar uma visão, dentro ou fora das empresas.
Veja: E como criar no Brasil um ambiente mais propício à inovação?
Felipe: Há questões bem conhecidas, como reduzir o tempo para abrir uma empresa ou obter uma patente. Além disso, é preciso reconhecer características e entraves específicos das startups no Brasil. Hoje, se um investidor investe em uma empresa desse tipo, corre um riscos grandes. Isso porque a responsabilidade de uma empresa instituída como limitada não é, ao contrário do que diz o nome, limitada, em função da forma como a Justiça do Trabalho enxerga as dívidas trabalhistas. Em caso de um processo, o juiz pode recorrer ao patrimônio do investidor. Outro exemplo desses problemas é relativo à tributação. A Receita não considera as perdas que o investidor tem. Imagine que um investidor coloque 1 milhão de reais em dez startups, 100.000 em cada uma. Nove das empreitadas fracassam, com perda de 900.000 reais, e apenas uma delas floresce, trazendo um retorno de 2 milhões de reais. Para o governo, o investidor deve recolher, a título de ganho de capital, imposto sobre 1,9 milhão de reais. O cálculo é: 2 milhões de retorno na startup bem-sucedida menos 100.000 investidos nesse mesmo negócio. Na verdade, o investidor deveria pagar imposto sobre 1 milhão, que é o que efetivamente ele ganhou, pois perdeu 900.000 nas iniciativas que fracassaram. Em vários países, isso está resolvido. Aqui, não.
Veja: Projetos e propostas de incentivo a startups contam quase sempre com dinheiro do governo. É possível prescindir da participação do Estado?
Felipe: A participação do Estado é quase essencial, principalmente para quem, como nós, está muito atrás na corrida mundial. É bobagem dizer que no Vale do Silício não teve participação do Estado. Teve, ainda que de forma indireta. O Vale surgiu em função do investimento pesado do governo americano em pesquisas militares e do setor de telecomunicações. A tecnologia surgida ali deu origem a muitas empresas. Sem aquele investimento inicial em pesquisa aplicada, voltada à solução de problemas reais, provavelmente não teríamos a internet como a conhecemos hoje, nem boa parte das empresas de tecnologia, nascidas no entorno das universidades. É importante notar que o investimento do Estado não agiu sozinho. Havia também um ambiente adequado do ponto de vista regulatório, mais ágil que o brasileiro, e uma cultura mais empreendedora.
Veja: A proximidade das empresas com as pesquisas acadêmicas conta?
Felipe: No Brasil, a cultura universitária está muito distante do mercado. Tem muita gente na universidade que entende que o objetivo da universidade não é falar com o mercado, é formar gente. Entendo esse ponto de vista, mas ele está deixando o Brasil para trás. Deixamos de aproveitar grandes oportunidades de aplicar melhor o conhecimento que possuímos. Números de alguns anos atrás mostram que a participação da ciência brasileira na produção mundial gira em torno de 2,5%, taxa bastante parecida com a participação do PIB brasileiro na economia global. Contudo, o Brasil tem cerca de apenas 0,2% das patentes mundiais. É mais do que dez vezes menos. Pior: das nossas patentes, muito poucas são aplicadas.
Veja: O que isso significa?
Felipe: Que a ciência que produzimos, a despeito de termos pesquisa e pesquisadores muito bons, fica restrita à universidade. Não existe comunicação entre a pesquisa realizada na universidade e o mercado. Assim, perdemos a oportunidade de transformar esse conhecimento em produto, serviço, valor agregado. Vendemos ferro barato para comprar aço caro.
Veja: Falta capacidade?
Felipe: Não. Em minha carreira, já avaliei mais de 4.000 empresas. Tive também a oportunidade de olhar o ambiente fora do Brasil, na Ásia, na Europa, nos Estados Unidos, no Vale do Silício. Nosso empreendedor não perde em nada para os de lá, ao contrário: ele é mais resiliente e criativo. Mas, devido ao nosso ecossistema, ele não consegue produzir o que poderia. O animador é que temos mais e mais gente na universidade querendo empreender. Pesquisa da Endeavor mostrou que 62% dos universitários em 2014 queriam ter seu próprio negócio. É um número fantástico. Acho que estamos a uma ou duas gerações de uma mudança muito radical nas relações de trabalho, com mais gente tocando o próprio negócio, ao invés de procurar um emprego.
Veja: Você esteve à frente do Startup Brasil, um programa promovido pelo governo, por dois anos. Quais foram os avanços?
Felipe: Primeiro, o fato de ter, pela primeira vez, um programa específico para o desenvolvimento de startups dentro do governo federal é uma mudança de paradigma. Enfim, o assunto entrou na agenda oficial. Em segundo lugar, o programa inovou na forma de fazer política pública, porque o Startup Brasil foi pensado em associação com o setor privado, o que não é muito comum no governo. Faz todo o sentido ser assim. Não é papel do governo acelerar empresas, porque o governo não entende disso, e sim permitir que outros o façam. Essa, aliás, foi a razão de eu ter aceito o convite: não fui apadrinhado de ninguém, recebi um convite técnico por ser reconhecido dentro do setor. Os primeiros resultados são bons. Na primeira turma, o governo pôs 8,5 milhões de reais: para cada real investido pelo governo, a iniciativa privada colocou mais de 2 reais. Nas novas turmas, essa relação deve ser ainda melhor.
Veja: Onde o programa precisa avançar?
Felipe: Os principais desafios têm a ver com fazer política pública dentro do Estado, que segue processos necessários, mas burocráticos e lentos. Então, há questões operacionais que esbarram nessa burocracia. Seria preciso melhorar isso. Outro ponto tem a ver com a regionalização do programa. Como ele é tocado pelas aceleradoras, acontece onde as aceleradoras estão. Elas, por sua vez, estão localizadas onde está o mercado. Aí, você acaba concentrando tudo nas regiões mais desenvolvidas. Não acho que poderia ser diferente, mas acho que é preciso pensar de que forma estimular outras pessoas e regiões a empreender. O Startup Brasil ainda não resolveu isso.
Veja: O que você aprendeu estando dentro da engrenagem do Estado?
Felipe: Várias coisas. A primeira delas é que inovação é quase uma atividade ilegal no ambiente de governo. E por definição. Se você pegar a definição do direito privado, ela diz: você pode fazer qualquer coisa exceto o que está proibido na lei. Se você pegar a definição do direito público, é: você não pode fazer nada, exceto o que está permitido na lei. Ou seja, inovação é ilegal, porque você não pode fazer nada que não esteja permitido na lei. Então, para inovar, você tem que mudar a lei, para que ela permita fazer algo novo. É o caso do Uber. A sociedade sempre está mais avançada do que a regulação. Outra coisa que aprendi é que tem muita gente boa no governo.
Veja: Há investidores que dizem que, hoje, não falta dinheiro para bons projetos de startups, mas faltam bons projetos para o dinheiro disponível. Você concorda?
Felipe: Ainda temos um gap de financiamento para empresas em estágio inicial, mas de fato não falta dinheiro para projeto bom. Sobre faltar projeto bom para o dinheiro disponível, sim, falta, mas cada vez menos. Muita vezes, os projetos são imaturos, porque os empreendedores não têm experiência. No Brasil, ainda tem muita gente na base da pirâmide do empreendedor: é preciso mudar isso. Temos também que melhorar a qualidade dos projetos. Para isso, precisamos de educação, com programas de educação, aceleração e prática.
Veja: O maior desafio do empreendedor brasileiro é técnico ou de gestão do negócio?
Felipe: Gestão. Como tem pouca experiência, em geral, o empreendedor acha que tem a melhor ideia do mundo, o que talvez seja verdade, mas ele certamente não tem todas as competências para realizá-la, do ponto de vista técnico, de operação, de gestão e de vendas. O que vejo é que, em geral, as startups são formadas por pessoas com conhecimentos técnicos, mas que menosprezam as demais habilidades.
Fonte: Veja, 20/7/2015
Se não envolver e mudar o judiciário é trabalho perdido.