A abertura comercial do Brasil não foi totalmente acompanhada pelo mercado financeiro, que continua preso a um paradigma antiquado e a restrições sem sentido. Em tempos em que se debate a derrubada de barreiras ao comércio exterior, poder-se-ia analisar as vantagens de avanços no tratamento a moedas de países estrangeiros.
A base da legislação cambial brasileira é o decreto 23.258 de 1933, que ainda está em vigor e foi sancionado pelo presidente Getúlio Vargas e o ministro Osvaldo de Souza Aranha. Foi logo após o abandono do padrão ouro, durante a recessão mundial da década de 1930, em que a escassez de divisas era crônica e crítica, a posse de moeda estrangeira era criminalizada e sua gestão era mercantilista.
Ao longo de mais de oito décadas, a legislação teve ajustes e o tratamento dado ao câmbio avançou, mas não o suficiente, com prejuízos para o país. Há proibição de contas em dólares no país, a volatilidade da moeda é alta, a proteção (hedge) é cara, a negociação com moedas estrangeiras é vista com suspeição, há prazos para liquidação de contratos de câmbio de exportações e a manutenção de um volume elevado de reservas no Banco Central que aumenta a dívida bruta do governo.
A obsolescência cambial é onerosa para a economia. Um exemplo é o turista. Um visitante pode pagar pelos seus gastos com Bitcoins (tratado como permuta), com bananas (idem), mas não pode pagar em dólares ou euros (artigo 318 do Código Civil). A alternativa legal é usar o cartão e arriscar com uma taxa de câmbio volátil, incerta e com margens de compras e vendas elevadas.
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No último ano, a cotação máxima do dólar foi 29% maior do que a mínima. A incerteza da trajetória do câmbio e a criminalização de sua posse explicam uma parte de porque o Brasil, com 6% do território mundial, tem apenas 1% dos turistas, sendo o maior contingente de argentinos, que também sofrem com a flutuação do peso.
No setor não financeiro, em especial na agricultura e na indústria, o efeito da volatilidade cambial é maléfico, a lucratividade das empresas é refém da trajetória do câmbio. As incertezas das cotações das divisas fazem com que empresários posterguem e ou cancelem decisões de exportar, importar, produzir e investir.
Parte da volatilidade cambial se explica pela segmentação do mercado de divisas no Brasil. Sendo que o futuro, a B3, é sofisticado, eficiente e isento de IOF (Imposto de Operações Financeiras) para ficar comprado em derivativos de câmbio. Já o à vista (spot) é burocrático, com restrições operacionais e tributa operações com moedas estrangeiras.
O quadro poderia ser corrigido com a autorização para contas em divisas e a permissão de sua posse combinado com a desburocratização do mercado cambial: reduziria a dívida bruta do governo, repassaria o risco e custo de carregamento das reservas aos detentores de contas em moeda estrangeira, arrefeceria a volatilidade do mercado e daria uma proteção (hedge) menos onerosos ao setor não financeiro.
Outra vantagem é que daria mais transparência às contas em divisas. Atualmente, é legal para residentes no Brasil terem contas no exterior, todavia, são difíceis de fiscalizar para detectar movimentações ilícitas, algo que não ocorreria se os depósitos fossem no Sistema Financeiro Nacional.
Haveria também um ganho potencial de redução do endividamento bruto do governo. As reservas estão num patamar de US$ 370 bilhões, ao cambio atual totalizam cerca de R$ 1,4 trilhão, o que equivale a 26% da dívida bruta do governo ou a onze anos de déficit primário do governo central ou ainda a mais do que pode ser ganho com a reforma da previdência em uma década. É um valor graúdo.
Pode-se avançar ainda mais na abertura financeira e criar uma jurisdição offshore em São Paulo, alguns quarteirões apenas. Seria algo semelhante ao que existe em Londres e em Hong Kong. Funcionaria como uma “Zona Franca Financeira”, com legislação, tributação e regulamentação semelhantes às de centros financeiros offshores existentes, que teria uma estrutura prudencial e de gestão de liquidez adequada e solução de conflitos em outros foros jurídicos internacionais.
Há estimativas de que entre um décimo e um terço da riqueza do planeta está aplicado neles e uma proporção maior do comércio mundial passa por esses locais. Há transações feitas para esconder recursos, mas a maioria das operações é motivada por vantagens tributárias, diversificação de carteiras, facilidades para transferências, segurança jurídica, agilidade e simplicidade de normas. Parte desses recursos é de empresas e cidadãos brasileiros que seriam aplicados na jurisdição a ser criada.
Num dos centros, as Ilhas Cayman, mais de vinte bancos do Brasil têm agências e ou subsidiárias, com o pleno conhecimento do Banco Central e da Receita Federal. Milhares de contribuintes brasileiros também informam, nas suas declarações de renda, as aplicações nesses locais. Essas instituições financeiras que operam lá, também poderiam operar aqui, gerando empregos para escritórios de advocacia, classificadoras de risco, suporte tecnológico e serviços de apoio na capital paulista.
Não se está propondo mudar em nada a atual regulamentação e tributação do Sistema Financeiro Nacional (SFN). Mas, sim, a criação de um “apêndice” com outro marco institucional. Cidadãos, empresas, bancos e fundos nacionais e estrangeiros operariam com restrições semelhantes às que atualmente são impostas nas Ilhas Cayman e em outros centros offshore.
Há sinais de mudanças na política cambial, em duas direções. De um lado, avanços: o discurso do novo presidente do BC tinha anúncios positivos, como o de fazer o real uma moeda conversível. De outro, retrocesso: um aumento na tributação de divisas ao exterior. Fica a dúvida de qual será o rumo. O SFN é sofisticado e tem potencial de dar uma contribuição valiosa ao país, mas para tanto tem que se adequar aos tempos atuais.
Fonte: “Valor Econômico”, 22/03/2019