O Brasil de hoje é provavelmente um dos países do mundo que melhor convivem com o absurdo. Fomos desenvolvendo na vida pública brasileira, ao longo de anos e décadas, uma experiência sem igual em aceitar a aberração como uma realidade banal do dia a dia, tal como se aceita o passar das horas ou o movimento das marés.
A morte do ministro Teori Zavascki, dias atrás, na queda de um avião privado no litoral do Rio de Janeiro, foi a mais recente comprovação da atitude nacional de pouco-caso diante de comportamentos oficiais que não fazem nexo. É simples. O ministro Zavascki não poderia estar naquele avião, porque o avião não era dele ― estava viajando de favor, e um ministro do STF não pode aceitar favores, de proprietários de aviões ou de qualquer outra pessoa. Nenhum juiz pode, seja ele do mais alto Tribunal de Justiça do Brasil, seja de uma comarca perdida num fundão qualquer do interior.
Da morte de Teori já se falou uma enormidade, e sabe lá Deus o que não se falou, ou talvez ainda se fale. Foram feitas indagações sobre o dono do avião, um empresário de São Paulo, seus negócios e suas questões junto ao Judiciário. Foram apresentados detalhes sobre suas relações pessoais, seus projetos empresariais e seu estilo de vida. Foram examinadas as circunstâncias em que se originou e evoluiu seu relacionamento com o ministro. Não apareceu nada que pudesse sugerir qualquer decisão imprópria por parte do magistrado ― ao contrário, sua conduta à frente dos processos da Lava-Jato continua sendo descrita como impecável. Mas o problema, aqui, não é esse. O problema é que ninguém, entre os que tomam decisões ou influem nelas, estranhou o fato de que um dos homens mais importantes do sistema de justiça brasileiro, nos trágicos instantes finais de sua vida, estivesse viajando de carona no avião de um homem de negócios que não era da sua família nem do seu círculo natural de amizades. Não se trata de saber se o empresário era bom ou ruim. Sua companhia não era adequada, apenas isso, para nenhum magistrado com causas a julgar.
A questão não se limita aos empresários. Não está certo para um juiz, da mesma maneira, frequentar ministros de Estado e altos funcionários do governo. Ele também não pode andar com sócios de grandes escritórios de advocacia ― grandes ou de qualquer tamanho. Entram na lista, ainda, diretores de “relações governamentais” de empresas, dirigentes de órgãos que defendem interesses particulares e políticos de todos os partidos. Não dá para aceitar convites de viagem com “tudo pago”, descontos no preço e qualquer coisa que possa ser descrita como um favor. Não é preciso fazer a lista completa ― dá para entender completamente do que se trata, a menos que não se queira entender. O ministro Zavascki não era, absolutamente, um caso diferente da maioria dos membros do STF e de uma grande parte, ninguém poderia dizer exatamente quantos, dos 17.000 magistrados brasileiros de todas as instâncias. Seu comportamento era o padrão ― com a diferença, inclusive, de ser mais discreto do que muitos. Ninguém nunca viu nada errado no que fazia ― e ele, obviamente, também não.
Cobrança exagerada? Diante dos padrões de moralidade em vigor na vida pública nacional, é o caso, realmente, de fazer a pergunta. Mas não há exagero nenhum em nada do que foi dito acima. Ao contrário, essa é a postura que se observa em qualquer país bem-sucedido, democrático e decente do mundo. Na verdade, não passa na cabeça de ninguém, nesses países, levar uma vida social parecida à que levam no Brasil os ministros do STF e de outros tribunais superiores, desembargadores e juízes de todos os níveis e jurisdições. Muitos magistrados brasileiros também acham inaceitável essa confusão entre comportamento privado e função pública. Não falam para não incomodar colegas, mas não aprovam ― e não agem assim. Têm a solução mais simples para o problema: só falam com empreiteiros, etc. no fórum, e nunca a portas fechadas. Para todos eles, “conversa particular” é coisa que não existe. Nenhum deles vê nenhum problema em se comportar assim. Eles aceitam levar uma vida pessoal com limites; só admitem circular na própria família, com os amigos pessoais e entre os colegas. Fica mais difícil, sem dúvida. Mas ninguém é obrigado a ser juiz, nem a misturar as coisas. Só quem quer.
Fonte: “Veja”, 1º de fevereiro de 2017.
sensacional artigo do guzzo!
visao apurada, essencial