Apresentando uma rápida recuperação econômica, enquanto a China passa por um período de arrefecimento, os Estados Unidos vislumbram a possibilidade de acordo de livre-comércio com a União Europeia.
Em entrevista ao Instituto Millenium, o cientista social e diplomata Paulo Roberto Almeida aponta suas impressões sobre o pacto, incluindo as implicações para Brasil e América Latina. Considerando o posicionamento dos países-membros do Mercosul, Almeida analisa ainda a situação do bloco.
Confira a entrevista.
Instituto Millenium: Durante o auge da crise financeira de 2008 e nos anos seguintes, especialistas sinalizavam para um possível fim do predomínio econômico ocidental. Hoje percebemos um arrefecimento da economia chinesa e a rápida recuperação dos Estados Unidos. Como o senhor enxerga essa situação?
Paulo Roberto Almeida: Que os EUA declinem, relativamente, em face de países com taxas elevadas de crescimento, como a China, é absolutamente normal e esperado. Mas cabe retornar à história e registrar que, diferentemente dos velhos impérios do passado, que baseavam o seu poderio na dominação puramente militar, no controle de territórios e na extração de recursos, o império ocidental, ou americano, não está baseado nesses processos de força bruta, e sim no império do livre comércio, dos investimentos, da inovação tecnológica e, sobretudo, da inteligência.
Se impérios militares podem ser vencidos por uma coalizão de oponentes ou por algum adversário mais poderoso, um império baseado na inteligência e na interdependência é relativamente indestrutível. Na atual configuração da economia mundial, pode-se prever um declínio muito relativo para os EUA, e para a própria Europa. Eles são império da sociedade do conhecimento e, por mais avanços industriais que possam ocorrer em outras regiões, sempre estarão na vanguarda das descobertas científicas e das inovações tecnológicas.
Instituto Millenium: A Europa parece acreditar na manutenção dos EUA como potência econômica, ao iniciar negociações para um acordo de livre comércio. Caso aprovado, quais são as vantagens para as duas regiões?
Almeida: Se e quando for efetivado – e as apostas contrárias são poderosas –, tal acordo terá um impacto profundo em termos institucionais, ou seja, sobre o sistema internacional de comércio e suas rodadas de negociação e em relação a terceiros mercados. Mais ainda, um acordo desse tipo parece sintetizar todos os bons efeitos e todos os defeitos, todos os méritos e os muitos vícios do minilateralismo comercial.
Instituto Millenium: Quais seriam os impactos deste acordo para o Brasil e para a América Latina?
Almeida: Acordos regionais de comércio são potencialmente discriminatórios contra terceiras partes e podem reforçar as tendências ao desvio de comércio e de investimentos, mais do que ao crescimento global desses fluxos. No caso da UE e dos Estados Unidos, porém, essas ameaças são relativamente insignificantes, tendo em vista as barreiras tarifárias bastante reduzidas efetivamente existentes, exceto no setor agrícola, e o amplo grau de uniformização de práticas comerciais e contábeis já alcançadas dentro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
No entanto, não é improvável que, em um cenário como esse, os países da orla do Pacífico, e até do Índico e da Oceania, acelerem suas próprias negociações, algumas já em curso, com o objetivo de também estabelecer uma vasta área de preferências tarifárias, podendo evoluir, em médio prazo, para um acordo de livre comércio. Não foi por outra razão que alguns países latino-americanos – Chile, Peru, Colômbia e México – decidiram consolidar antigos laços de liberalização comercial parcial em um esquema que leva o significativo nome de “Aliança do Pacífico”.
A preocupação de países visivelmente excluídos desses processos de liberalização comercial pode levar a acordos de integração regional, entre eles, em especial, os do Mercosul, bloco que parece experimentar uma fase de retrocessos econômicos e de certa recaída na retórica integracionista de cunho político com efeitos totalmente inócuos para a integração real de suas economias.
Instituto Millenium: O Brasil enfrenta dificuldades para realizar acordos internacionais por pertencer ao Mercosul. O bloco representa 58% do Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina, porém o país enfrenta o protecionismo argentino, o Paraguai foi suspenso e a Venezuela encontra-se em crise econômica. Qual a sua análise sobre o Mercosul?
Almeida: A base de todo empreendimento integracionista é a existência de uma vontade comum aos participantes em adotar as medidas necessárias para viabilizar os requerimentos do processo de desmantelamento de barreiras à formação de um espaço econômico comum. Se, em algum momento, essa comunhão de propósitos existiu entre os membros do Mercosul, essa vontade, há muito, parece ter deixado de existir. Basta observar, no decurso da segunda década do bloco, a adoção progressivamente crescente de medidas unilaterais de caráter exclusivamente nacional que passaram a afetar a conformação jurídica do quadro regional enquanto personalidade de direito internacional sob a forma de união aduaneira.
Todos reconhecem que, a despeito dos avanços realizados nos primeiros dez anos, os impulsos do Mercosul em direção a uma maior liberalização comercial e para a constituição de um espaço econômico unificado no Cone Sul foram paralisados a partir de 1999, e até retrocederam nos anos seguintes. A união aduaneira sequer consolidou-se sob uma autoridade comum, dotada de aplicação uniforme de suas regras, havendo, inclusive, a coexistência de enorme volume de exclusões à Tarifa Externa Comum.
Os governos dos países-membros favoreceram, em diversos setores da área econômica, o retorno a velhas posturas nacionalistas e estatizantes, atitudes que estavam em nítida contradição com os requisitos tradicionais da integração, que são a abertura econômica e liberalização comercial.
Instituto Millenium: O senhor vê solução para o bloco?
Almeida: Para ser bem-sucedido, o Mercosul tem de voltar ao básico, e cumprir o acordado no 1º artigo do Tratado de Assunção (TA), ou então começar por assumir a responsabilidade de efetuar uma reforma profunda de seus instrumentos constitutivos. Um bom começo de um processo de reformas seria um diagnóstico realista dos impedimentos sistêmicos ou contingentes ao acabamento da união aduaneira, a partir do qual se poderia prescrever uma arquitetura institucional, para a qual as autoridades políticas dos atuais parceiros poderiam concordar em dar apoio.
Nenhuma solução “cooperativa” em torno de um processo de integração elude, porém, a necessidade de reformas internas em cada um dos países participantes. E um compromisso inquebrantável com o respeito à legalidade democrática e aos bons princípios do estado de direito seria uma condição essencial para o sucesso de todo e qualquer esquema integracionista que se empreenda na região.
Observações bastante pertinentes. Em 91, ao participar de um evento entre as lideranças dos países membros do Mercosul, observei que o mesmo atropelava os procedimentos. Na ânsia de sedimentação, seus membros decidiam precipitadamente..Naquela ocasião, dei como exemplo os passos cuidadosos da CE, em cada etapa do seu processo de integração. Mas o Mercosul, na pressa de consolidação, fazia o contrário. Pularam etapas, não realizaram os testes necessários para correção de caminhos, e não se importaram em dar o tempo necessário à assimilação…Deu nisto.