A suposta falta de coordenação entre a polícia, o Ministério Público e o Judiciário sempre foi identificada como uma das principais causas da impunidade no Brasil. A baixa capacidade de articulação, a superposição de funções e até a competição entre essas organizações que fazem parte do sistema de justiça costumavam ser apontadas como as principais causas da morosidade e da baixa eficácia da justiça brasileira, especialmente no que se refere a punir políticos envolvidos em escândalos de corrupção.
A Operação Lava Jato parece ter rompido essa armadilha. O Ministério Público e a Polícia Federal passaram a funcionar sob a organização de “força-tarefa. O então juiz Sérgio Moro foi exclusivamente alocado para trabalhar nos casos da Lava Jato em estreita conexão com promotores e investigadores.
Por meio desses ganhos de coordenação inéditos, o êxito da Lava Jato parece inegável. O portal do MPF mostra resultados expressivos: quase 2.500 procedimentos judiciais instaurados até o momento, incluindo 244 condenações contra 159 pessoas (políticos das mais variadas matizes ideológicas e partidárias, empresários, agentes públicos, etc.) e a recuperação de quase R$ 13 bilhões por acordos de colaboração, sendo R$ 846 milhões objeto de repatriação e R$ 3 bilhões em bens de réus já bloqueados.
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Após a divulgação pelo site The Intercept Brasil, de conversas entre algumas das autoridades da Lava Jato, que sugerem ação coordenada e estratégica de seus membros no combate à corrupção, a credibilidade da operação ficou em cheque. Questiona-se a isenção da operação sob o argumento de que a ação coordenada do então juiz Sérgio Moro com os promotores, com objetivos comuns predefinidos, violaria a legislação processual e a ideia de estado de direito.
Será que os resultados exitosos da Lava Jato teriam sido obtidos sem os ganhos de uma ação coordenada e estratégica de seus membros?
O que se verifica é uma espécie de paradoxo da coordenação. Sem ela, o sistema de justiça mostrou-se incapaz de fazer frente a organizações criminosas e a impor perdas judiciais a estruturas de corrupção de proporções colossais. Por outro lado, quando juízes, promotores e investigadores desenvolvem estratégias coordenadas de ação, corre-se o risco de que essas ações se confundam com instrumentalização e conluio.
Qual então seria o limite de ações coordenadas da justiça? Quando o espírito do estado de direito de fato estaria sendo violado pela coordenação? A coordenação pode ser excessiva mesmo se não houver utilização de provas ilícitas ou negligência na utilização de provas lícitas?
No ambiente extremamente polarizado em que o Brasil tem vivido, respostas a essas perguntas não são livre de vieses. As interpretações confirmando ou rejeitando decisões da Justiça necessariamente são afetadas pelo nível de congruência com crenças prévias.
Por exemplo, a partir das minhas crenças, a linha azul da figura abaixo agrega todos os fatos mensais que fortaleceram (i.e., julgamento do mensalão) o estado de direito e a linha vermelha, os eventos que enfraqueceram (i.e., divulgação dos áudios de Dilma e Lula). Fica evidente que, desde o início da Lava Jato, em 2014, houve uma inflexão extremamente positiva. Entretanto, a partir de 2018 percebe-se que a diferença entre eventos positivos e negativos não mais apresenta diferença estatística.
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O debate sobre esses paradoxos da ação coordenada de organizações de controle, portanto, vai muito além do conteúdo das mensagens divulgadas, e até mesmo do caso concreto da Lava Jato. A sociedade terá de definir os parâmetros do trade-off entre impunidade e coordenação.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”