Por consenso cultural, o Estado é capaz de prover milagrosamente recursos inexistentes
O Estado gigante, dissecado na matéria do Estadão O desmonte do Leviatã (17/12/2016), é um delírio que as evidências desmentem, mas resiste apoiado no mito da onipotência mágica do Estado, coerente com o déficit cultural e o caráter permissivo do povo de país em que o Estado precedeu e moldou a sociedade no culto de seu poder, real ou ilusório. No Brasil colônia, na democracia oligárquica do Império e da Primeira República, no desenvolvimentismo dos 1930 aos 1970 e, recentemente, na democracia de massa de viés populista, há 500 anos esse mito vem sancionando atitudes e políticas irrealistas ou equivocadas. Vejamos três de suas muitas manifestações, influentes na crise que flagela o País.
Na cultura do nosso serviço público o Estado mágico sempre pode atendê-lo – uma fantasia desmascarada pelos percalços do pagamento de servidores do Rio de Janeiro, caso emblemático, mas não o único, em que a segurança utópica do mito se transformou em tragédia. Apesar da crise das finanças públicas nos três níveis da Federação, as reivindicações persistem Brasil afora e a carga do serviço público cresce, “puxada” por categorias (algumas já hierarquizadas no alto na pirâmide salarial brasileira) política e/ou funcionalmente capazes de pressionar (no Brasil a greve é hoje mais comum no serviço público…), tendo o povo como refém e/ou vítima, até mesmo à margem da Constituição, a exemplo das greves de policiais, objeto de recente condenação pelo Supremo Tribunal.
Passemos ao déficit da Previdência, que se soma à carga do serviço público na configuração das vicissitudes fiscais do Estado brasileiro.
No mundo desenvolvido o envelhecimento da população, a redução da natalidade e a do ingresso da juventude no mercado de trabalho vêm induzindo ajustes na idade mínima da aposentadoria e outros, que garantem vida ao sistema. No Brasil qualquer medida para evitar o colapso é agressão ao trabalhador. Aumentar a idade mínima é condená-lo a “morrer trabalhando” – aqui, mas não em grande parte do mundo! Haveria agressão maior que o colapso e o não pagamento das aposentadorias? No imaginário nacional essa hipótese é inverossímil: o Estado mágico pode e deve suprir o déficit da Previdência.
Os modelos de aposentadoria e pensão do serviço público pesam forte no calvário da Previdência. Há que revisá-los – uma revisão complexa e multifacetada, em que as peculiaridades militares e as que distinguem setores civis devem ser ponderadas por rigoroso critério que legitime as efetivamente merecedoras de distinção.
O Estado grande empresário, corolário natural do Estado gigante, é o objeto deste terceiro comentário. As privatizações sugeridas pela realidade – a inviabilidade de investimento na dimensão necessária, por exemplo – sofre resistência dos funcionários das empresas e de políticos, com o aval indiferente do povo. A razão explícita costuma ser o papel que algumas exerceram, mas poucas mantêm e outras são hoje mais problema que solução. Na verdade, para os funcionários a razão é o vínculo empresa-Estado, que, sem afetar direitos trabalhistas, lhes dá a sensação de segurança do Estado onipotente, cujas empresas “não quebram”: o governo operador da suposta onipotência sempre “dá um jeito”. E para o mundo político é o fato de que o estatismo está na cultura influente no clima eleitoral e/ou porque o Estado capitalista é pródiga fonte de empregos, comumente vulneráveis aos meandros venais – incompetência, improbidade – do gigantismo estatal.
A insanidade do cenário simbolizado nessas três manifestações acima é evidenciada por um paradoxo.
Simultaneamente à pressão por mais atenção aos encargos que justificam o Estado – saúde, educação, segurança, infraestrutura… –, mal atendidos por orçamentos exauridos pelas cargas do pessoal e da Previdência e prejudicados por malfeitos (a corrupção…) e pela incompetência, irrompem reações contra quaisquer medidas para dotar o Estado com recursos para atendê-los. O capital quer financiamento público generoso e, com razão, mais investimento na infraestrutura, mas resiste à redução de desonerações e subsídios, ao aumento de impostos. O trabalho reclama, com muita razão, por melhores serviços públicos, mas reage às políticas de austeridade necessárias para tornar viável o pretendido. E o mundo político oscila, ambíguo, por convicção ou interesse eleitoral.
Reside aí o paradoxo: as reivindicações se sucedem em todos os setores da vida nacional, mas as medidas para atendê-las sofrem resistência nas esferas política, do capital e do trabalho, sem a apresentação de alternativas. Ninguém aceita aumento de impostos, nem assume a responsabilidade de dizer onde ser mais austero (onde cortar…) para resolver a equação, complicada pela Lei de Responsabilidade Fiscal e mais ainda pela emenda constitucional do teto de gastos – na saúde, educação, segurança, infraestrutura ou em programas sociais –, para atender a isso ou àquilo, incluídas demandas salariais e o déficit da Previdência? A razão é simples: por que políticos, sindicatos e o capital proporiam soluções em que algum sacrifício sempre se imporá e (na esfera política) por que correr risco eleitoral, já que por consenso cultural, mistura de ignorância, interesse e demagogia irresponsável, o Estado é capaz de prover milagrosamente recursos que não existem?
O Estado deve ser forte, mas isso não significa gigante e mágico. Ao contrário: essa fantasia o fragiliza ao risco de desastre. Contribuiu para a crise que vivemos hoje e dificulta sua solução, como contribuiu para outras no passado. Nosso delírio cultural precisa ser trazido à realidade: ou se “desmonta” o mito do Estado onipotente, com a definição racional de possibilidades e responsabilidades e o fim do paradoxo irresponsável e insensato das soluções mágicas, ou ele mais dia, menos dia desmorona no caos. Ameaça que já não é nula.
As instituições da democracia escapariam incólumes?
Fonte: O Estado de S. Paulo, 12/04/2017
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