“A culpa é do capitalismo global, financeirizado e desigual.” Frases de efeito como essa ressurgem sempre que o mundo é sacudido por evento inesperado. A crise financeira de 2008 foi evento inesperado. O voto britânico pela saída da União Europeia (UE) foi evento inesperado. Complexos, ambos suscitam perguntas e levantam teses. Mas, para todo problema complexo existe uma solução clara, simples, e errada. A solução não é acabar com o capitalismo ou reverter a globalização.
O que diz a literatura empírica e acadêmica sobre a globalização? É verdade que a globalização aumentou a desigualdade mundo afora? De onde vem o sentimento nacionalista que se alastra nas economias maduras? Seria hora de repensar o ritmo da integração global?
As evidências. Em livro recém-publicado, o economista Branko Milanovic, um dos maiores especialistas mundiais em desenvolvimento econômico e desigualdade, desvelou gráfico famoso, hoje conhecido como o “gráfico do elefante”. Ao analisar os aumentos da renda por habitante ajustados pela inflação em relação aos níveis globais de renda entre 1988 e 2008 – auge da globalização –, o autor descobriu que a parcela da população global que mais se beneficiou foi a classe média. Ou seja, ao contrário do que reza o senso comum, a classe média global passou por notável expansão durante o período de maior aceleração da globalização, entre a queda do muro de Berlim e a crise de 2008. Grande parte disso deve-se ao aumento considerável da classe média na China e no restante da Ásia. O gráfico impressiona pois, além de contradizer ideias preconcebidas, revela outro ponto interessante: a parcela que menos se beneficiou da globalização foi justamente a composta por pessoas pertencentes à classe média baixa dos países maduros.
O formato de tromba de elefante vem da constatação de que os ganhos dos rendimentos no meio da distribuição global de renda cai abruptamente quando se chega aos 20% mais ricos, apenas para subir novamente de modo súbito quando se alcança o topo do topo, isto é, o 1% mais rico.
Portanto, a globalização não aumentou a desigualdade de renda no mundo – na verdade, a globalização contribuiu para reduzi-la. Contudo, o que ocorreu foi que parte relevante da classe média mais vulnerável nos países desenvolvidos foi excluída desse processo. Sua renda não subiu, nem caiu – portanto, não houve piora absoluta. Porém, essas pessoas foram testemunhas de ganhos acelerados nas rendas dos mais ricos de seus países, e da renda de países mais pobres no mundo, criando um perigoso sentimento de exclusão relativa.
De certo modo, é esse sentimento que hoje se manifesta de maneira difusa em movimentos como o Brexit, a ascensão de Donald Trump nos EUA, a adesão aos discursos de políticos nacionalistas como Marine Le Pen na França. Digo de maneira difusa pois a sensação de terem sido privados de algo provoca reações diversas nessas pessoas – do resgate das velhas tradições à xenofobia, do nacionalismo cego à vontade de retomar a autonomia nacional, fora de grandes blocos e projetos como a UE, que naturalmente levam a que se ceda parte da soberania.
Seria a hora de reaver o ritmo da integração global? Em seu “The globalization paradox”, o economista e professor de economia política da Universidade de Harvard Dani Rodrik descreve o trilema da globalização: a ideia de que não é possível ter, simultaneamente, um regime democrático, plena autonomia nacional, e globalização, sobretudo a globalização acelerada que marcou uma era. Há que se escolher duas dessas três premissas – a terceira, seja qual for, é sempre incompatível com as demais. O Brexit, por mais que pareça ser suicídio político e econômico para muitos, é expressão do trilema. A opção de retirar-se da UE foi exercida para que se pudesse recuperar autonomia nacional, já que sua relativa redução não mais servia à parcela da população que sente-se privada dos ganhos com a globalização.
Eis, portanto, o paradoxo: a globalização reduz desigualdade, mas o faz de modo demasiado desigual. O desafio não é revertê-la. O desafio é descobrir como atenuar a desigualdade da redução da desigualdade.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 29 de junho de 2016.
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