“Nomeei Noguera por sua biografia e sua família, confiei nele. Se delinquiu, me dói e peço desculpas à cidadania.” Foi assim, no condicional, que o ex-presidente Álvaro Uribe reagiu à condenação de Jorge Noguera a 25 anos de prisão, pela Corte Suprema, em 2011.
Noguera, diretor do Serviço de Inteligência estatal entre 2002 e 2006, no primeiro mandato de Uribe, foi sentenciado por pertencer secretamente às Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), maior grupo paramilitar do país.
O processo que o desmascarou salvou o Estado colombiano das garras das milícias. Sugiro ao Ministério Público, ao Congresso e ao ministro Sergio Moro que estudem o caso –e não por mera curiosidade histórica.
O paramilitarismo na Colômbia é fenômeno tão antigo quanto as guerrilhas de esquerda. As AUC, como as Farc, sua inimiga, firmaram pactos com o narcotráfico e envolveram-se com inúmeros negócios criminosos.
Na moldura da guerra civil, os tentáculos dos grupos paramilitares alcançaram a esfera da política. O termo “parapolítica” descreve o entrelaçamento dos dois mundos. Os paramilitares patrocinaram as eleições de deputados, prefeitos e vereadores.
O Ministério da Justiça colombiano divulgou, antes das eleições municipais de 2011, uma lista de candidatos “inidôneos”. Eram 13 mil nomes, mais que 10% do total.
As milícias brasileiras não surgiram no quadro de uma guerra civil, mas no contexto do controle das favelas do Rio de Janeiro pelo crime organizado. Nasceram como “polícia mineira”: grupos de autodefesa das comunidades.
Logo, evoluíram como bandos criminosos que exploram serviços ilegais e mantêm laços estreitos com a polícia oficial. A infiltração das milícias na política começou há tempo, em escala local. A Folha (31) publica indícios alarmantes sobre a possível extensão dos tentáculos da parapolítica ao núcleo do Estado brasileiro.
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O clã Bolsonaro notabilizou-se, ao longo dos anos, por minimizar a ameaça das milícias. A estratégia discursiva empregada articula-se em torno de uma simulação: eles fingem que as milícias encontram-se, ainda, no estágio embrionário de “polícia mineira”.
A bandeira da liberação do porte de armas encontra, aí, sua lógica: sem as rigorosas restrições atuais, uma faceta crucial da atividade dos milicianos fica protegida da sanção da lei.
Evidentemente, o discurso político dos Bolsonaro não constitui sintoma de envolvimento com as milícias. Já os lugares ocupados pelo ex-PM Fabrício Queiroz e pelo ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega na rede de relações do clã levantam óbvias suspeitas.
O segundo, acusado de liderar o Escritório do Crime, milícia suspeita da execução de Marielle Franco, foi homenageado na Alerj por Flávio Bolsonaro, a pedido do primeiro. Na ocasião, o ex-Bope encontrava-se preso, justamente em função de suas aparentes ligações com as milícias.
O gabinete de Flávio Bolsonaro empregou como assessoras a mãe e a esposa de Adriano, sempre a pedido de Queiroz, o homem que produz dinheiro vivo. Nada disso, em si mesmo, é crime. Mas são coincidências em série que solicitam investigações urgentes.
Na Colômbia, informações compartilhadas por Noguera com as AUC conduziram a pelo menos um assassinato de ativista de direitos humanos: o do professor Alfredo Correa de Andreis, em 2014. No fim, graças ao Judiciário, a Colômbia não se tornou um Estado dos paramilitares.
Por aqui, com a ascensão de Bolsonaro ao Planalto, o tema das milícias escapa aos limites do Rio, ganhando dimensões nacionais. A lição colombiana é que a parapolítica pode até se instalar na cúpula estatal.
Num país sério, o MPF já teria assumido o controle sobre as investigações da estranha teia de relações de Flávio Bolsonaro, e o Congresso criaria uma CPI da execução de Marielle. Mas, se fôssemos um país sério, não estaríamos contando os mortos de Brumadinho.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 02/02/2019