O grande vencedor do Oscar deste ano foi “Parasita”, cuja narrativa tem como ponto de partida a desigualdade social na Coreia do Sul.
É curioso que seja assim, uma vez que a sociedade sul-coreana é relativamente igualitária. Segundo dados da OCDE, o coeficiente de Gini sul-coreano (que mede a desigualdade) é baixo: 30,2, ante 51,5 no Brasil, ambos para 2014.
A fração da renda apropriada pelos sul-coreanos que compõem os 10% mais ricos, de 22%, é das menores da OCDE. No Brasil, os 10% mais ricos se apropriam de 42% da renda.
A pobreza, contudo, é relativamente elevada na Coreia do Sul. Segundo a mesma base de dados, a taxa de pobreza, de 14,4%, é maior do que a média para a OCDE, de 11,4%. O problema é ainda maior na pobreza da população idosa: 48,8%, ante 12,1% da média da OCDE.
Os números sugerem ser uma sociedade que priorizou excessivamente o crescimento econômico e deu pouco peso para o bem-estar presente. Carece de um Estado de bem-estar social abrangente. Não faço a menor ideia de como esse equilíbrio consegue vigorar numa sociedade democrática.
Sabemos que a sociedade sul-coreana tem um sistema público de educação de altíssimo nível. Há, portanto, bastante igualdade de oportunidades. E, de fato, a baixa desigualdade aponta nessa direção.
Também sabemos que, em sociedades com elevada igualdade de oportunidades, as diferenças inatas têm maior peso para explicar o desempenho no mercado de trabalho. Se o berço não faz tanta diferença para sua vida profissional, os diferenciais de talento serão mais importantes.
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Sociedades assim podem ser muito dolorosas. Se há igualdade de oportunidades —e se houver percepção desta igualdade—, somos os únicos responsáveis por onde estamos.
O excelente livro “As Crianças mais Inteligentes do Mundo” descreve a elevada competição dos alunos sul-coreanos e o excesso de horas que os jovens dedicam ao estudo. Nesse caso, trata-se, sem dúvida, de excesso.
Tanto que o MEC deles conduz políticas públicas para desestimular as longas jornadas sobre os livros.
Talvez este seja o tema de “Parasitas”: a falta de lugar que há para os perdedores em uma sociedade igualitária, muito competitiva e sem Estado de bem-estar social.
Para mim, que tenho o hábito de olhar as coisas referenciadas ao Brasil, o que mais chamou a atenção no filme foi o enorme grau de homogeneidade daquela sociedade.
Os filhos da família que está na pobreza extrema compartilham do mesmo universo dos filhos da família mais rica. Têm o mesmo domínio do idioma, não se vestem de forma muito diferente e compartilham das mesmas referências culturais. Os pobres extremos conseguem dar aulas de inglês e atendimento psicológico aos filhos dos extremamente ricos.
Os extremamente pobres se distinguem, aos olhos dos extremamente ricos, só por um cheiro particular que incomoda os ricos. Fruto de diferenças de alimentação, segundo o filme.
A sociedade sul-coreana superou o subdesenvolvimento, é tecnologicamente muito avançada, equalizou as oportunidades e é socialmente homogênea. No entanto, há muita pobreza, principalmente entre os idosos, e há competição em demasia, principalmente entre os jovens.
“Parasita” é um manifesto em defesa do Estado de bem-estar. Bem-estar que equalize os resultados, e não bem-estar que promova a igualdade de oportunidades.
No Brasil temos a situação inversa: pobreza entre os idosos bem menor que na Coreia do Sul e desigualdade muito maior. Estamos muito atrasados na equalização das oportunidades.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 16/2/2020