Combinadas, a aceleração das pressões inflacionárias e a perda de fôlego na retomada da economia neste início de ano deixam o Brasil num quadro de “estagflação” – situação em que o crescimento econômico fica estagnado ou em retração, mas, diferentemente do que seria normal com a atividade fraca, os preços aceleram. A avaliação é de Tony Volpon, estrategista-chefe da gestora WHG e ex-diretor do Banco Central (BC). A boa notícia é que a “estagflação” poderá ficar restrita à primeira metade do ano.
Para Volpon, uma reação do BC e uma melhora no quadro da pandemia, com avanço da vacinação, poderão resultar, numa “confluência positiva no segundo semestre”, em retomada mais forte da economia e inflação comportada. Leia os principais trechos da entrevista:
O que está pressionando a inflação?
Sabemos, empiricamente, que as expectativas de inflação, muito baseadas na inflação corrente, acabam batendo de volta na inflação. Temos um choque primário, que está vindo da combinação de (alta no) câmbio (ou seja, o avanço nas cotações do dólar) e (alta nas cotações de) commodities e da desarticulação das cadeias de oferta. Os choques primários batem na inflação e voltam, há uma dissipação ao longo do tempo, mas influenciam nas expectativas.
O atual choque primário na inflação se deve à pandemia?
Ele tem três elementos. Tem uma desorganização (da economia por causa) da pandemia. Estamos vendo isso ao redor do mundo. Essa questão (da falta) de chips para (a fabricação de) automóveis é global e é um exemplo. (Como segundo elemento) Há uma forte alta dos preços das commodities, por causa da recuperação global, que vem depois da pandemia. Só que o câmbio (o terceiro elemento) é um pouco diferente. Aí o problema é nosso (relacionado ao desequilíbrio fiscal). Acho que houve má calibragem do BC, o que ele está fazendo de intervenção do câmbio (nos últimos dias) poderia ter feito antes.
Esse choque será dissipado?
A pergunta que se coloca é: dissipa para qual nível? Qual será o impacto desse choque sobre o nível esperado para a inflação no futuro? Isso tem muito a ver com expectativas. Sem uma boa “ancoragem” das expectativas (quando a política do BC atua para controlar essas expectativas, por exemplo, comunicando que poderá subir os juros), os choques primários se estabilizam num nível muito alto, não compatível com as metas. Se esse processo se consolida, é preciso correr atrás do prejuízo, o que leva o BC a fazer um arrocho monetário muito forte (ou seja, subir os juros). Para não ter que fazer isso, correndo atrás do prejuízo e danificando o crescimento, é preciso se antecipar e não deixar as expectativas subirem. Para isso, há duas coisas importantes.
Quais?
Primeiro, é o (equilíbrio) fiscal. No Brasil, sempre tem certo medo latente de que a solução do (desequilíbrio) fiscal vai ser dada pela inflação. Quando os agentes econômicos acreditam que toda a bagunça fiscal vai acabar dando em inflação, eles ajustam as expectativas para cima. A outra coisa que impacta a inflação é a ação do BC. Quando os agentes acreditam que o BC é leniente com a inflação, que não está disposto, por qualquer razão, como interferência política ou erro de diagnóstico, a realmente pagar o preço político de subir juros, a expectativa sobe.
O desequilíbrio fiscal está elevando as expectativas de inflação?
Sim. Não consigo desenhar um horizonte muito claro de quando teremos superávit primário (saldo positivo entre receitas e gastos públicos, sem contar as despesas financeiras com juros da dívida). Agora, estamos batendo em outro ciclo eleitoral. Sei que não será em 2022 (que haverá superávit primário). Por isso, colocar gatilhos na Constituição (como faz a PEC Emergencial) agora não quer dizer muita coisa.
O controle das expectativas de inflação fica todo com o BC?
A compensação por essa dúvida tem que ficar com o BC. Já que temos essa coisa nebulosa (em relação ao equilíbrio fiscal), preciso que o BC faça o seu trabalho, porque temos essa incerteza. O (equilíbrio) fiscal não vai contribuir para controlar expectativas.
É hora de o BC subir os juros?
Frente esse quadro, ter uma taxa (real, ou seja, descontada a inflação) de juros negativa não é condizente com um BC que quer ancorar as expectativas. Partimos da discussão olhando para um câmbio que se deslocou para cima e para aquele choque primário. Esse quadro não é compatível com juro (real) negativo de 2% (como é no momento atual, quando a taxa de inflação é subtraída da taxa básica Selic, hoje em 2% ao ano).
Se o BC subir os juros, a economia pode perder ainda mais folego?
Essa atuação terá um efeito benéfico no dólar. Parte da apreciação de ontem e hoje se deve à mudança na estratégia de intervenção do BC (no mercado de câmbio), mas parte se deve também porque o mercado agora está acreditando que haverá essas altas (na taxa básica de juros) e, portanto, isso ajuda o dólar (a cair). Isso ajuda a reduzir os prêmios de risco no mercado como um todo, e eles estão em níveis elevadíssimos. Sabemos que isso tem impacto (positivo) nas condições financeiras. Condições financeiras mais brandas, há bastante evidência empírica disto, acabam ajudando o crescimento econômico. Contra o senso comum, o BC pode subir os juros e isso ajudar o crescimento econômico. Colocamos os juros (reais) a -2%, que não é uma taxa de equilíbrio, e isso gera distorções. Agora, temos que voltar a ter uma taxa de equilíbrio. A alta de juros vai “reancorar” a economia, especialmente no câmbio, e, com isso, ajudar a melhorar as condições financeiras, que hoje estão apertadas.
O quadro é de “estagflação”?
Parece que vai ser (um quadro de “estagflação”), no primeiro semestre, em função, muito mais, da pandemia. Estamos fechando cidades de novo. Isso vai ter um baque enorme na atividade. E a inflação teve esse choque primário. Minha esperança é que haverá uma aceleração no processo de vacinação, e o País poderá finalmente entrar numa dinâmica, com todas as peculiaridades do Brasil, que estamos vendo em outros países que estão tendo vacinação: começa a ter um boom econômico. O Brasil está atrasado na segunda onda (da pandemia), está atrasado na queda da onda e na vacinação, mas, em algum momento do segundo semestre, acabamos tendo isso. E, se o BC fizer o seu trabalho, e ancorar bem as expectativas, aí temos a dissipação da inflação. Olhamos para um segundo semestre com queda da inflação e aumento da atividade. Obviamente, temos as questões políticas. Não fizemos um trabalho muito bom na questão fiscal, mas, se parar por aqui, com esse auxílio (emergencial) mesmo, que não passa de (um gasto total de) R$ 40 bilhões, podemos ter uma confluência positiva no segundo semestre, mas, até lá, é isso mesmo, é estagflação.
Fonte: “Estadão”, 12/03/2021
Foto: Dida Sampaio/Estadão