Por Armínio Fraga
Roberto Campos chegou ao fim da vida um tanto frustrado, como sugere o penúltimo parágrafo de suas memórias (“A Lanterna na Popa”, Topbooks, 1994, p. 1.283): “Minha geração falhou na tarefa de fazer do futuro o presente, lançando o país numa trajetória de progresso sustentado, sem inaceitáveis desníveis de renda e oportunidades”. Penso que, se ele tivesse vivido até hoje, estaria ainda mais frustrado ao observar nossa extraordinária capacidade de esquecer a história e destruir o que foi construído. Vejamos alguns exemplos dessa errática trajetória de nosso país.
Em discurso proferido em 1960 nos Estados Unidos (“Reflections on Latin American Development”, University of Texas Press, 1967, p. 9), Campos resumiu em cinco pontos os principais desafios do crescimento econômico na América Latina (minha tradução):
“Primeiro, como mobilizar a poupança interna e como obter as divisas necessárias para uma aceleração da taxa de investimento?
Segundo, como reduzir a ineficiência do investimento resultante de limitações ao mercado? Terceiro, como reduzir a instabilidade das receitas de exportação?
Terceiro, como reduzir a instabilidade das receitas de exportação?
Quarto, como treinar as pessoas para uma civilização tecnológica e para a tarefa de liderar?
Quinto, como melhorar a qualidade do governo?”.
A atualidade dessa lista é desconcertante. Por muitos anos Campos confrontou, de forma coerente e contundente, esses tópicos com a realidade do Brasil. Depois de nos ter deixado há mais de 15 anos e de ter elaborado a lista há mais de meio século, nosso país segue exibindo:
Primeiro, uma baixa taxa de investimento e poupança;
Segundo, enormes ineficiências características de economias fechadas, mal reguladas e carentes de mais concorrência;
Terceiro, vulnerabilidades a flutuações nos preços das commodities (e das condições e liquidez internacional);
Quarto, grandes carências educacionais e tecnológicas e, finalmente,
Quinto, um governo inchado, ineficiente, corrupto e muito endividado.
Na década de 60 muitas dessas questões foram abordadas, especialmente no bem-sucedido Paeg. No entanto, a despeito de Campos e Bulhões, com o tempo ficou claro que foi mantida a escolha fatal por um modelo de desenvolvimento alicerçado da ação direta e discrecionária do Estado na economia, no protecionismo, na industrialização não competitiva e na falta de ênfase na educação, que segue nos custando caro até hoje.
A partir do início da década de 90, iniciou-se a gradual abertura da economia e a privatização, promoveu-se uma reforma do Estado, com ênfase em educação, saúde e no redesenho da regulação financeira e dos setores ligados à infraestrutura, para dar alguns exemplos. Lamentavelmente, e violando o primeiro item do decálogo liberal de Campos (“Na Virada do Milênio”, Topbooks, 1998, p. 33, atribuído a Tom Jobim) que diz que “o Brasil deve parar de admirar o que não deu certo”, a partir do segundo mandato do presidente Lula e, especialmente no governo da presidente Dilma Rousseff, voltou-se a um modelo muito parecido com o resumido acima, com resultados previsíveis. Passado o pesadelo dessa calamitosa gestão, cá estamos de volta outra vez a uma agenda de reconstrução dos fundamentos do desenvolvimento econômico. Não surpreende que esse modelo tenha permitido a captura do Estado por interesses privados, corporativistas e partidários. Nessa captura está a raiz da corrupção generalizada que assola o país, fruto de perversa parceria entre um Estado que tudo pode e grupos de interesse que tudo querem.
Além desses aspectos de natureza microeconômica, ligados à baixa produtividade da economia e à desigualdade, o Brasil vem sofrendo com crises recorrentes no campo macroeconômico. Roberto Campos foi sempre um astuto observador dessas questões, focando em especial no desenho e desenvolvimento de instituições focadas e robustas.
Um bom exemplo é o Banco Central do Brasil, instituição criada pela Lei nº 4.595 de 1965, quando Campos era ministro do Planejamento e agia em parceria com Octávio Gouveia de Bulhões, ministro da Fazenda. Essa lei criou um BC bastante moderno, com objetivos claros (prevenção de ciclos inflacionários e deflacionários) e mandatos fixos para seus dirigentes (que seriam, portanto, independentes). Em parágrafo conhecido de suas memórias, Campos relata que “no Brasil há leis que ‘pegam’ e leis que não ‘pegam’. A que criou o Banco Central não pegou. É que o Banco Central, criado independente, tornou-se depois subserviente. De austero xerife, tonou-se devasso emissor” (p. 669). A independência do BC foi logo contestada pelo presidente Costa e Silva, que, questionado sobre a importância do BC como guardião da moeda, informou a Campos que “o guardião da moeda sou eu” (p. 669) e, em seguida, substituiu o presidente da instituição. Anos depois, após numerosos surtos inflacionários e fracassados planos de estabilização, houve uma volta à estabilidade da moeda a partir do Plano Real, da criação do Comitê de Política Monetária e do sistema de metas para inflação, acompanhadas de um severo ajuste fiscal, em 1999, e da aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (que durou até 2014).
Roberto Campos tinha, desde sempre, uma visão bastante avançada e sofisticada do funcionamento geral de regimes macroeconômicos, o do Brasil em particular. Em palestra proferida em 1963 (“Reflections”, p. 106-107), diz (minha tradução): “os monetaristas poderiam talvez melhor ser chamados de fiscalistas, dado que eles também dão grande ênfase ao ajuste fiscal” e que “um grande fator causal da inflação na América Latina é gasto governamental deficitário”.
No entanto, ao longo dos 25 anos seguintes, as instituições fiscais do Brasil permaneceram pouco transparentes e muito caóticas, em que pese a introdução (na esteira da Constituição de 1988) de orçamentos anuais, de plano plurianual de investimentos e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (“A Lanterna na Popa”, p. 1.201). Ocorre que, na prática, essa disciplina nunca foi respeitada, e os orçamentos acabavam se equilibrando na boca do caixa, através da inflação.
No fundo, o problema era e continua a ser mais profundo, e guarda relação com a recorrente dificuldade política e cultural do país caber em suas contas. Tal questão em boa parte remonta a um alvo favorito das críticas de Campos, a profusão de direitos que caracteriza a Constituição de 1988 (“A Lanterna na Popa”, p. 1215). Prova disso é o praticamente contínuo crescimento desde então do gasto público como proporção do PIB.
A despeito de estarem em vigor a LDO e a Lei de Responsabilidade Fiscal, a partir do ano de campanha de 2014 ocorreu um extraordinário colapso da disciplina orçamentária, que desde 1999 exibia relevantes superávits primários. A deterioração do saldo primário foi de cerca de seis pontos percentuais do PIB e, com a profunda recessão, pôs a relação dívida pública/PIB em uma trajetória explosiva, já podendo ao final deste ano chegar a mais de 75%. A aprovação recente de um teto constitucional para o crescimento do gasto público deu um sinal importante de que podemos estar aprendendo, mas precisa ser reforçada por inúmeras reformas, especialmente a da Previdência, sob pena de se tornar apenas mais uma tentativa frustrada.
Que o Brasil tenha voltado a essa precária situação, após tantas reformas e programas ao longo de tantos anos, só confirma as preocupações manifestadas brilhantemente por Roberto Campos ao longo de sua vida. Consequência dessa ciclotimia é que nos últimos 35 anos a nossa renda per capita vem caindo como proporção da americana, um trágico desempenho. Claramente o Brasil segue carente de um Estado bom, eficaz e disciplinado, sem o qual não existe real chance de desenvolvimento.
(*) versão revisada de artigo publicado no livro “Lanterna na Proa – Roberto Campos Ano 100”, organizado por Ives Gandra e Paulo Rabello de Castro (editora Resistência Cultural, São Luís, 2017).
Fonte: Valor Econômico, 15/07/2018
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